quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

General Osório

História
Osório nunca precisou ser um Caxias
Edição Impressa 148 - Junho 2008 - Pesquisa FAPESP
Tolstoi estava tristemente correto ao escrever que um povo feliz não tem história. Daí lançar-se mão para lembrar as pessoas de que elas têm motivos para estarem infelizes e que é preciso "remediar" o passado. "O Brasil tem uma dívida histórica com o Paraguai, que se pode pagar com a concessão de um tratamento diferenciado nas relações entre os dois países. No caso de Itaipu, o Brasil deveria pagar a preço de mercado – e não a preço de custo, como prevê a parceria – a energia excedente que o Paraguai não consome", afirmou, em entrevista, o novo presidente paraguaio, Fernando Lugo, invocando, em nome de questões atualíssimas, a velhíssima Guerra do Paraguai (1865-1870). "O presidente Hugo Chávez recordou ao presidente Lugo sua admiração pela luta histórica do povo paraguaio, digno herdeiro da memória do marechal Francisco Solano López, e coincidiram na necessidade de continuar construindo a União de Nações Sul-americanas sobre a base da reivindicação da história de luta de nossos povos", reitera a nota emitida pela chancelaria venezuelana sobre o telefone dado por Chávez ao colega recém-eleito.
"López foi o grande patriota latino-americano, humilhado pela aliança da tríplice traição a América Latina, seus homens e suas mulheres", declarou recentemente a presidente argentina, Cristina Kirchner, que batizou uma unidade do Exército argentino em homenagem a López. A tese da "dívida histórica" é dividida também por brasileiros, como o senador Cristovam Buarque, que defende mudanças no acordo sobre Itaipu: "Não podemos simplesmente negar ao Paraguai o direito de pedir o reajuste. Nós não podemos esnobar o Paraguai. Até porque temos uma dívida com esse nosso país vizinho, já que há 138 anos matamos 300 mil de seus cidadãos na Guerra do Paraguai. Em proporção, seria como se matassem 9 milhões de brasileiros". Não é de hoje que ditadores, como Stroessner, e militantes de esquerda se unem na condenação da Guerra do Paraguai como um "massacre imperialista" feito pelo Brasil, em suposto conluio com a Inglaterra, que teria dizimado as chances de grandeza paraguaia, ou nas palavras de Lugo: "Há um reconhecimento da dívida histórica com o Paraguai. Acreditamos na Justiça e o Paraguai deveria voltar a ocupar o lugar que ocupava: o país mais desenvolvido, o mais unido, que tinha um projeto econômico diferenciado".
Assim, por mais inusitado que possa parecer, o presente é um ótimo momento para voltar a falar de figuras-chave de um conflito tão antigo. Como na nova biografia do general Osório (General Osório, Companhia das Letras, 262 páginas, R$ 35,50), lançada no bicentenário de seu nascimento, escrita pelo historiador Francisco Doratioto, autor de Maldita guerra, uma história revisionista da Guerra do Paraguai, que põe abaixo mitos como o extermínio da população masculina paraguaia, os ideais modernizantes de López e a vitimização do Paraguai. "Quem fala em traição ou está mal informado ou tem segundas intenções. López foi o agressor, que invadiu os vizinhos. Não houve a tal industrialização paraguaia e nunca existiu a tal idade de ouro do Paraguai. López não era um paradigma de progresso, de luta contra o imperialismo, nem um construtor de sociedades modernas", explica. "O revisionismo argentino e uruguaio é de esquerda e o paraguaio era um nacionalismo de direita que buscava legitimar um ditador como Stroessner usando a figura de outro ditador, López." A história não foi bem servida em nenhum dos casos. "No Paraguai, a exaltação de López serviu à ditadura; no Brasil, a satanização da guerra e do comando brasileiro serviu de arma de combate à ditadura", observou, com sabedoria, José Murilo de Carvalho.
A confusão sobre a real dimensão do conflito e de seus personagens, porém, não se restringe apenas a interesses comerciais ou oportunismo político. O comandante do Exército brasileiro no Paraguai, Osório, também sofreu com a reescrita interessada da história. "O Exército de Caxias, como se autodenomina hoje a instituição, foi por um bom tempo o Exército de Osório e essa mudança só pode ser entendida se relacionadas as trajetórias política e militar dos dois generais com o contexto histórico em que foram adotados como personagens paradigmáticos", avisa Doratioto. "Afinal, embora nos dias atuais eles sejam lembrados como militares, também foram políticos e, em certas épocas, se dedicaram mais à política que ao Exército." O Partido Conservador, pelo qual Caxias se elegeu senador, defendia o Estado centralizado e a manutenção da ordem social. Osório era do Partido Liberal, que priorizava a descentralização do poder e a maior participação dos cidadãos no processo político. Caxias era o Exército de elite, formado na Academia, enquanto Osório era o Exército que vinha de baixo (e que, na velhice, confessou seu horror pela vida militar) e que relevava pequenas transgressões, formalismos e aparências. Daí a razão da jovem República, feita por golpe militar, nota Doratioto, sem ter símbolos, ter que descobrir em Osório o "pré-republicano", a ponto de, em 1894, Floriano Peixoto dirigir uma manifestação popular para a inauguração da estátua do general no Rio de Janeiro, na atual Praça XV.
"Foi o primeiro general brasileiro a pisar no território paraguaio e enquanto Caxias e outros militares e políticos brasileiros desconfiavam do presidente argentino Mitre (o líder da Tríplice Aliança contra o Paraguai), afirmando que ele agia para prolongar o conflito, quer devido a ganhos financeiros que proporcionava à Argentina, quer para enfraquecer o Império, Osório foi um dos poucos militares brasileiros que não partilhavam desse sentimento", afirma Doratioto. O aventureiro inglês Richard F. Burton, cônsul inglês em Santos e observador britânico no cenário da guerra, relatou que os soldados admiravam Osório e acreditavam que "ele tinha o corpo fechado e, depois dos combates, sacudia o poncho para as balas caírem". O general era visto, pelos colegas de hierarquia, como "irresponsável" pela maneira como colocava a vida em risco durante os combates. Na Batalha do Avaí, um tiro destruiu seu maxilar, mas, mais tarde, quando Caxias foi substituído pelo conde d'Eu no comando militar das tropas, não fugiu ao dever e voltou ao fronte para lutar.
No ataque à fortaleza de Humaitá, principal baluarte de defesa de López, Osório foi enviado por Caxias para averiguar o sucesso do bombardeio fluvial feito pela esquadra aliada. Enfrentando resistência, afirmou ter recebido ordens de Caxias (que nunca confirmou ter dado tal comando) para recuar, provocando pesadas perdas. "O episódio deixou feridas, exploradas por lideranças liberais, que passaram a apresentar Osório como vítima de Caxias, porque este o veria como rival", observa o autor, que lembra como, ao fim do conflito, "Osório era, à exceção de Pedro II, o brasileiro mais popular, um fato desconfortável para o governo conservador". Logo, é fácil compreender por que durante 4 décadas a principal comemoração militar brasileira ocorria no aniversário da Batalha de Tuiuti, onde Osório foi o herói do dia. Mais complexo é entender o "rebaixamento" do general a partir dos anos 1920 seguida pela elevação de Caxias, até então uma figura secundária, ao posto de Patrono do Exército.
Reinvenção - "Em contraponto ao 'esquecimento' de Caxias, havia uma celebração de Osório como grande militar, um culto em boa medida espontâneo", avalia o historiador Celso Castro, para quem as razões dessa mudança estão na preocupação do Exército com as agitações "tenentistas", que levariam à Revolução de 1930. "Mais do que a reorganização de uma instituição fragmentada, ocorreu uma reinvenção do Exército como instituição nacional, herdeira de uma tradição específica e com um papel a desempenhar na construção da nação brasileira", afirma Castro. Para tanto, foi preciso "inventar" um Caxias adequado ao novo papel simbólico exigido. "Os predicados atribuídos a Caxias – de um general disciplinado e apolítico – são parte dessa imagem criada no século XX, atendiam a interesses de uma República nacional conservadora que se esforçava para conter a indisciplina militar. Esses predicados, porém, caracterizam um 'ser militar' que não existia no século XIX", analisa a historiadora Adriana Barreto de Souza, autora da tese de doutorado O Duque de Caxias e a formação do Império brasileiro. "Entronizado nesse panteão, e após 21 anos de ditadura militar, o diálogo com Caxias se tornou mais difícil, pois ele era ou tratado com admiração irrestrita por militares, ou demonizado como patrono do Exército pela oposição que se fazia ao golpe de 1964. Ele virou o "duque-monumento", observa Adriana.
Se de início a troca da guarda Osório por Caxias serviu como forma de valorizar a legalidade e o afastamento da política, a partir do Estado Novo varguista essa mudança, embora mantida, adquiriu novos tons: "Passou-se a ressaltar as qualidades do duque como chefe militar a serviço do Estado forte e centralizado, tal qual o da ditadura de Vargas", avalia Doratioto. Essa instrumentalização persistiu após 1964, quando os militares no poder colocaram em relevo as características de Caxias que interessavam à situação vigente, como a de ter sufocado movimentos revolucionários. "Essas foram de fato suas características e, à exceção do princípio da centralização, também as de Osório. Contudo os dois generais tinham ainda como características a subordinação ao poder civil, a aversão ao caudilhismo e a repulsa ao militarismo, mas estas os ideólogos do autoritarismo não tinham interesse em lembrar e os da democracia negligenciaram em recuperar." Infelizmente, por vezes, é mais conveniente esquecer a frase de Tolstoi e trocá-la pelo pragmatismo de um Bismarck: "A história é um simples pedaço de papel impresso; o principal é fazer história, e não escrevê-la".
-- Fabrício Augusto Souza Gomes fabricio.gomes@gmail.com MSN: fabriciosgomes@msn.com

Biblioteca Virtual Europeia

Domínio dos franceses Domínio dos franceses
Pesquisa FAPESP -

A França está dominando uma biblioteca digital criada para oferecer conteúdos sobre a história, a literatura, as artes e a ciência da Europa. Quando o site Europeana (www.europeana.eu) for aberto, em meados deste mês, a metade dos 2 milhões de páginas e documentos disponíveis será escrita em francês. “Até a queda do muro de Berlim vai ser ilustrada com imagens de um documentário da televisão francesa”, disse ao jornal The New York Times Viviane Reding, responsável pelo projeto. Segundo ela, muitos dos países-membros da União Européia, que está bancando a Europeana, mostraram-se céticos em relação à iniciativa, mas agora estão mudando de idéia. O acervo irá combinar recursos digitais de museus e bibliotecas na forma de pinturas, mapas, vídeos e jornais. O material poderá ser baixado livremente pela internet e utilizado por pesquisadores, estudantes e o público em geral. O acervo vai incluir, por exemplo, a reprodução da Carta Magna da Grã-Bretanha, de 1215, e uma cópia da Divina comédia, de Dante. O projeto deve custar € 400 milhões.

Por que Gramsci?

Escrito por Carlos Nelson Coutinho
Dom, 21 de dezembro de 2008 08:09
Antonio Gramsci

Antonio Gramsci

Ao contrário do que supõem os conservadores e alguns ex-marxistas hoje “arrependidos”, o colapso do chamado “socialismo real” não significou o fim da reflexão que se inspira em Marx e na tradição marxista. Decerto, este colapso representou a crise terminal de uma específica leitura de Marx, o chamado “marxismo-leninismo”, que não passava na verdade de um hábil pseudônimo para stalinismo. Esta leitura serviu como ideologia de Estado para os regimes ditos “comunistas”, os quais, de resto, nada mais tinham a ver com as promessas de emancipação humana contidas na reflexão de Marx e dos verdadeiros marxistas. O que se pode constatar hoje, ao contrário, é que alguns autores marxistas ─ os menos comprometidos com aquela equivocada leitura ─ começaram até mesmo a ser lidos com maior atenção depois do fim do “socialismo real”, precisamente no momento em que foi suprimida a grave hipoteca do chamado “marxismo-leninismo”. Entre tais autores, cabe destacar os integrantes da Escola de Frankfurt (em particular Walter Benjamin), mas também, e sobretudo, Antonio Gramsci. Embora sejam certamente muito diferentes entre si, Benjamin e Gramsci nada têm a ver com o “marxismo-leninismo”. Benjamin era politicamente um free-lancer. Gramsci, ao contrário, foi um dos fundadores do Partido Comunista Italiano, era ligado à Internacional Comunista e considerava-se um seguidor de Lenin, mas inaugura na verdade um modo de interpretar o marxismo, diverso daquele oriundo da tradição bolchevique. Em sua obra da maturidade, redigida nos cárceres fascistas, Gramsci elaborou alguns conceitos que renovaram profundamente a teoria marxista, particularmente em sua dimensão filosófico-política. Dois deles, em particular, merecem destaque: os conceitos dialeticamente articulados de “sociedade civil” e de “hegemonia”. Foi sobretudo graças a eles que o marxismo se tornou contemporâneo do século XX e, com toda probabilidade, também do século XXI. Gramsci percebeu que, sobretudo a partir de 1870, havia surgido uma nova esfera do ser social capitalista: o mundo das auto-organizações, do que ele chamou de “aparelhos privados de hegemonia”. São os partidos de massa, os sindicatos, as diferentes associações, os movimentos sociais etc., tudo aquilo que resulta de uma crescente “socialização da política”, ou seja, do ingresso na esfera pública de um número cada vez maior de novos sujeitos políticos individuais e coletivos. Gramsci deu a essa nova esfera o nome de “sociedade civil”. E insistiu em que tal esfera faz parte do Estado em sentido amplo, já que nela têm lugar evidentes relações de poder. A “sociedade civil”, em Gramsci, é uma importante arena de luta de classes: a partir de seu surgimento, é sobretudo nela que as classes lutam para obter hegemonia, ou seja, direção política fundada no consenso, capacitando-se assim para a conquista e o exercício do poder governamental. A “sociedade civil” gramsciana nada tem a ver com essa coisa amorfa que hoje chamam de “terceiro setor”, pretensamente situado para além do Estado e do mercado. Ao descobrir essa nova esfera, ao dar-lhe um nome e ao definir seu espaço, Gramsci criou uma nova teoria marxista do Estado. E é preciso sublinhar os dois adjetivos: nova, mas também marxista. A novidade introduzida por Gramsci consiste na percepção de que o Estado não é mais o simples “comitê executivo da burguesia”, como Marx e Engels afirmam no Manifesto comunista de 1848 e Lenin e os bolcheviques repetem em suas obras. Mas a permanência de Gramsci no campo do marxismo é atestada pelo fato inequívoco de que ele continua a afirmar que todo Estado é um Estado de classe. Decerto, depois do surgimento da “sociedade civil”, o modo pelo qual é exercido o poder de classe se altera: o Estado se amplia, tornando-se mais complexo. Buscar hegemonia, lutar pelo consenso, tentar legitimar-se: tudo isso significa que o Estado deve agora levar em conta outros interesses que não os restritos interesses da classe dominante. Com seus novos conceitos, Gramsci habilitou-se a entender o tipo de Estado que é próprio dos regimes liberal-democráticos, um Estado que Marx não pode conhecer e que nada tinha a ver com a autocracia czarista com a qual Lênin se confrontou. Mas isso não impediu Gramsci de continuar afirmando que, em todo Estado, por mais complexo que seja, por mais interesses que seja obrigado a levar em conta em sua atuação, permanece um “núcleo duro”, aquele que define a sua natureza como agência de dominação da classe que detém a propriedade dos meios de produção. Essa nova definição do Estado resulta de um outro conceito central nas obras de Gramsci: aquele que distingue, no seio do capitalismo, entre formações sociais “orientais” e “ocidentais”. Para Gramsci, no que ele chama de “Oriente” (pensando sobretudo na Rússia czarista), o Estado em sentido estrito é tudo e a sociedade civil é primitiva e gelatinosa. Já no que chama de “Ocidente” (pensando aqui na Europa Central e Ocidental e nos Estados Unidos), há um equilíbrio entre as duas esferas. Foi a partir dessa distinção que Gramsci não só renovou a teoria marxista do Estado, mas também se empenhou em criar um novo paradigma de revolução socialista, adequado precisamente ao “Ocidente”, um paradigma bastante diverso daquele proposto e praticado pelos bolcheviques. Este último, em sua opinião, seria válido apenas para sociedades “orientais”, que ele praticamente reduz, já nos anos 30, ao que chama de sociedades “coloniais” ou “semicoloniais”. Coloca-se claramente uma questão: em qual desses dois “tipos” de sociedade se situa o Brasil? Decerto, o Brasil foi claramente “oriental” durante o Império e a República Velha. Mas, sobretudo a partir de 30, com interrupções, com avanços e recuos, conhecemos um processo de “ocidentalização”, ou seja, de crescimento e complexificação da sociedade civil. Já somos hoje uma sociedade “ocidental”, na qual, portanto, malgrado tudo, há uma “relação equilibrada” entre Estado e sociedade civil. Malgrado tudo porque, sem dúvida, somos um “Ocidente” periférico e tardio, o que implica a permanência entre nós de vastas zonas sociais tipicamente “orientais”. Mas esse era também o caso da Itália nos anos 30 ─ e Gramsci não hesitou, por isso, em considerá-la como parte do “Ocidente”. A correta caracterização da sociedade brasileira tem claras implicações na definição das tarefas que se colocam às forças de esquerda no Brasil de hoje. Se efetivamente somos sobretudo “Ocidente”, não mais podemos conceber um caminho exeqüível para o socialismo a partir do que ainda existe em nós de “orientalidade”: essa é uma tentação à qual ainda sucumbem alguns setores minoritários da esquerda, que parecem não ter aprendido a lição do fracasso da chamada “esquerda armada” nos anos 60 e 70. O caminho brasileiro para o socialismo deve respeitar essa nossa “ocidentalidade”, ou seja, deve basear-se numa paciente batalha pela hegemonia, pela conquista de espaços na sociedade civil, como condição prévia para a efetiva conquista do poder governamental. Embora a expressão não seja de Gramsci, esse caminho “ocidental” para o socialismo pode ser chamado de “reformismo revolucionário”. Foram muitas as leituras de Gramsci no Brasil. Além de influenciar inúmeras pesquisas em múltiplas áreas universitárias (da teoria política à pedagogia, da sociologia à crítica literária, da filosofia ao serviço social), Gramsci continua a determinar a orientação de muitos debates políticos entre nós. Do PSTU ao PPS, passando por várias correntes internas do PT, Gramsci é uma referência essencial para boa parte da esquerda e da chamada “centro-esquerda” brasileiras. E não só da esquerda ou da “centro-esquerda”: até mesmo o Presidente Cardoso, há cerca de um ano, numa entrevista à revista Veja, usou hipocritamente Gramsci para justificar suas posições políticas neoliberais. Embora os Cadernos do cárcere possuam uma articulação interna sistemática, a sua forma de apresentação é claramente fragmentária: isso parece permitir múltiplas interpretações, como se a obra de Gramsci fosse uma “obra aberta”. Não creio que o seja: Gramsci era um comunista, refletiu sobre as condições da revolução socialista no que ele chamou de “Ocidente”, propondo uma estratégia diversa daquela dos bolcheviques na Rússia de 1917. Mas o fato de que sua interpretação provoque acesos debates, que tanto o PSTU quanto o Presidente Cardoso possam citá-lo com aprovação, parece-me uma prova de que é preciso relê-lo com atenção. Nada melhor para isso do que uma nova edição crítica de sua obra entre nós, uma edição que o apresente sem prévias hipotecas interpretativas. Republicar e rediscutir Gramsci no Brasil tornou-se assim uma demanda real. A batalha ideológica em nosso País assumiu recentemente um rumo paradoxal. Precisamente no momento em que parece começar a ruir a hegemonia do “pensamento único”, do pensamento neoliberal, importantes personalidades da esquerda resolveram colocar em discussão a opção pelo socialismo. Precisamente no momento em que o capitalismo, no mundo e em nosso País, manifesta claramente sua incapacidade de solucionar minimamente os problemas da humanidade ─ os constantes problemas da liberdade, da igualdade e da fraternidade ─, essas personalidades de esquerda parecem querer recusar liminarmente a única alternativa exeqüível à barbárie em que estamos cada vez mais envolvidos, ou seja, precisamente a luta pela construção de uma nova ordem social, de uma sociedade socialista. De resto, essa renúncia a uma efetiva alternativa ao capitalismo baseia-se, muitas vezes, na falsa idéia de que haveria identidade entre socialismo e ditadura, entre socialismo e estatismo, ou que o socialismo seria concebido pelo marxismo como uma fatalidade inexorável. Ora, os que assim argumentam certamente não leram nem Marx nem Gramsci: ao contrário, acreditam ter aprendido marxismo através dos esquemáticos folhetos de Mao Tse-tung ou dos pífios manuais publicados em massa pela extinta “Academia de Ciências da União Soviética”. Para Gramsci, em clara oposição a essas falsas “fontes”, o comunismo é definido como uma “sociedade regulada”, na qual os mecanismo coercitivos do estado stricto sensu devem ser progressivamente absorvidos pelos aparelhos consensuais da “sociedade civil”. Para ele, portanto, todas as coerções heterônomas e alienadas, sejam elas resultantes do mercado ou da burocracia, devem ser substituídas progressivamente por relações fundadas num contrato livremente decidido entre os “produtores associados”, ou seja, no que ele chamou de “consenso”. Além disso, Gramsci sempre criticou as leituras fatalistas do marxismo, que previam uma marcha inexorável para o socialismo: chamou-as de “narcóticos”, afirmando claramente que elas impediam o pleno exercício de uma vontade coletiva autônoma e criadora. Para o autor dos Cadernos do cárcere, o socialismo é obra dos homens. Não é uma necessidade objetiva, no sentido de que seria determinada de modo fatalista pelas “condições materiais”; mas é certamente uma necessidade subjetiva, na exata medida em que só através de sua realização os homens podem efetivamente livrar-se da barbárie e cumprir as promessas de emancipação contidas na modernidade. No cárcere fascista, de resto, Gramsci se opôs duramente às propostas de socialismo formuladas e implementadas por Stalin. Mas nunca abandonou a sua convicção juvenil de que a Revolução de Outubro abrira uma nova etapa na luta da humanidade contra a exploração e a alienação. Ele sabia que essa luta era difícil e complexa, que o capitalismo dispunha de inumeráveis recursos, entre os quais os dispositivos postos em prática pelo que chamou de “americanismo”. Mas jamais renunciou a travar a luta pelo comunismo, por aquilo que definiu ─ sob a pressão da censura carcerária ─ como “sociedade regulada”. Por tudo isso, a máxima que adotou como inspiração para sua reflexão e sua ação mantém toda a sua atualidade: pessimismo da inteligência, otimismo da vontade. Então, por que Gramsci? Precisamente porque, ao nos ensinar a compreender melhor o capitalismo do século XX, ele nos indicou também a necessidade de lutar contra essa formação econômico-social e nos sugeriu importantes meios para fazê-lo. O que significa, portanto, que é bastante clara a tarefa que o autor dos Cadernos nos legou: a de reinventar um socialismo adequado ao século XXI. * Publicado em Teoria e Debate, São Paulo, n. 43, nov.-dez. 1999/jan. 2000. Este texto foi redigido a propósito do lançamento das Obras de Gramsci, editadas por C. N. Coutinho, com a colaboração de Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 10 v., 1999-2005. [COUTINHO, Carlos Nelson. Contra a corrente: ensaios sobre democracia e socialismo. 2. e. São Paulo: Cortez, 2008, p. 193-200]
Carlos Nelson Coutinho

Carlos Nelson Coutinho

Carlos Nelson Coutinho nasceu na Bahia em 1943. É professor titular da Escola de Serviço Social da UFRJ, na qual ensina Teoria Política e Formação Social do Brasil. Dirige atualmente a Editora UFRJ. Publicou vários livros, entre os quais Intervenções. O marxismo na batalha das idéias (São Paulo: Cortez, 2006), Gramsci. Um estudo sobre seu pensamento político (3. e. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2007) e Marxismo e política. A dualidade de poderes e outros ensaios (3. e. São Paulo: Cortez, 2008). É também editor das Obras de Antonio Gramsci (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 10 vols., 1999-2005). Foi um dos fundadores do PSOL e é do Diretório Nacional do partido.

Trabalhadores do mundo, competi

22/12/2008 Trabalhadores do mundo, competi Gerald Holtham A maior parte das análises sobre a crise atual têm se focado nas instituições financeiras, regulações e política monetária. Apesar de esses serem aspectos importantes para a formação da crise, não são a sua raiz. A verdade é que a economia mundial mudou sob vários aspectos que a levaram a instabilidade constante. Essas mudanças ainda não foram reconhecidas e assimiladas pelos bancos centrais e pelos políticos. O período de 1945 até o início dos anos 70 foi de emprego total e crescimento rápido no mundo capitalista. O controle do capital continuou existindo mesmo quando o comércio de bens e serviços foi liberalizado. O comércio internacional cresceu rapidamente. Havia a confiança plena de que, usando ferramentas fiscais e monetárias, o governo poderia assegurar o emprego total para que a Grande Depressão não se repetisse. O sistema Bretton Woods determinava que as taxas de câmbio de seus membros deveriam ser fixadas a certos parâmetros atrelados ao dólar (que por sua vez era atrelado ao ouro) e podiam oscilar apenas dentro de uma faixa estreita em torno desses parâmetros. Mas o Bretton Woods não era apropriado para lidar com os choques que reduziam a renda nacional. Os choques do petróleo nos anos 70 tiveram exatamente esse efeito, desencadeando uma batalha para decidir se os lucros ou os salários deveriam arcar com o prejuízo, o que normalmente acabava numa espiral salarial. A recessão foi necessária para restaurar a disciplina salarial. Essa experiência levou a uma mudança na visão dominante sobre como administrar a economia. Aceitava-se cada vez mais que existia uma determinada taxa de desemprego consistente com a inflação estável, e que a economia voltaria automaticamente à taxa "natural" se a política se concentrasse na inflação. Em geral, os bancos centrais continuaram a agir como se ainda estivéssemos no início dos anos 80. Para eles, seu papel era controlar a inflação e deixar que a economia se auto-regulasse. A maioria das recessões do pós-guerra foi desencadeada pela inflação e pela resposta política resultante. Mas depois dos anos 80, a maior parte das recessões, como a dos EUA e do Japão no começo dos anos 90, foi causada por outro mecanismo, para o qual os governos e bancos centrais estavam cegos. Quando os governos aboliram o controle sobre o câmbio nos anos 80, isso permitiu que o capital fluísse livremente para onde pudesse encontrar os maiores lucros. Isso enfraqueceu o trabalho em relação ao capital, uma mudança que se refletiu na diferença proporcional entre lucros e salários. De 1945 a 1980, a fatia do PIB relativa aos salários havia ou permanecido estável, em países como os Estados Unidos, ou aumentado em outros, como a Grã-Bretanha. Agora, ela caiu em quase todo o mundo e a fatia dos lucros aumentou. O Japão foi o primeiro a mostrar para onde isso podia levar. Nos anos 80 a economia japonesa cresceu 4% ao ano em termos reais e sua fatia de lucros chegou a atingir 40% em comparação aos 20% ou menos no Ocidente. Enquanto os preços dos ativos aumentavam, não havia inflação e o Banco do Japão não tinha problemas. Em 1990, o mercado de ações quebrou, a atividade e os preços começaram a cair. A queda dos preços - deflação - aumentou o peso das dívidas, dando início a uma recessão persistente. Aqui está o problema central do sistema globalizado. Se os lucros e a produção aumentam persistentemente mais rápido do que os salários, quem comprará a produção? A falta de demanda efetiva, em termos Keynesianos, pode ser ignorada por algum tempo, mas eventualmente se revela como um problema de "realização do capital", na linguagem dos marxistas. E foi o que aconteceu. Em 2000, o excesso de investimentos se tornou evidente e o mercado de ações caiu, entrando num declínio de três anos. Diferentemente do Japão, entretanto, os EUA passaram apenas por uma recessão moderada e de vida curta. Nada desastroso parecia ter acontecido. Depois do estouro da bolha das ponto-com, os EUA pareciam ter chegado a um ponto de contração. O excesso de produção significava que as companhias dos EUA não continuariam a investir como nos anos 90. A Ásia estava apertando o cinto e crescendo por conta de guardar dinheiro e exportar. Os consumidores do Ocidente não estavam ganhando o suficiente para comprar o excedente. Mas se pudessem ser induzidos a emprestar dinheiro, eles poderiam comprar os bens que de outra forma não poderiam pagar. O crescimento poderia continuar. No século 19, ninguém teria considerado emprestar dinheiro com tanta facilidade para que os trabalhadores pudessem manter a demanda; eles não teriam sido considerados dignos de crédito. Mas hoje os trabalhadores normalmente têm bens, sendo a casa o bem mais importante. Por várias razões, os preços das casas aumentaram durante meio século em muitas economias, principalmente nos países de língua inglesa onde a casa própria é uma importante aspiração individual e política. Quando as taxas de juros foram cortadas para atenuar e recessão de 2000-2001, desencadeou-
se um boom de empréstimos para incentivar a compra de casas em muitos países. Como os preços das casas estavam aumentando, o orçamento dos lares parecia estar perfeitamente bem: as dívidas estavam aumentando, mas o valor dos bens também. Eventualmente esse processo chegou a um limite. Os mais endividados tiveram de vender ou ter suas hipotecas executadas. Os preços escorregaram. O problema por trás da economia mundial é a falta de demanda, causada pelo fato de os lucros terem ultrapassado os salários num mundo com excesso de mão-de-obra. É fácil culpar os bancos centrais ocidentais por terem praticado uma política sem regulações depois de 2002, mas esquecemos que havia um medo generalizado de deflação - um medo que poderia ter se concretizado se os empréstimos aos consumidores não tivessem salvado a situação. Agora está claro que nós não vivemos num mundo em que o único propósito dos bancos centrais é evitar a espiral de salários e preços no país. Eles têm de prestar atenção no preço dos bens. Acordos internacionais de regulação financeira e taxas de capital também são urgentemente necessários. Se o capital estiver livre para procurar a mão-de-obra mais barata ao redor do mundo, ele não deveria ter liberdade para buscar subsídios de impostos, induzindo a uma corrida por impostos mais baixos sobre o capital. Os governos devem transferir a maior parte dos impostos para o capital, para atenuar os efeitos de um aumento da fatia do lucro. O capitalismo é o único sistema que pode produzir um crescimento sustentável dos padrões de vida. Para preservá-lo de uma forma que ofereça estabilidade e esperança para os pobres do mundo é necessária a intervenção estatal. Isso também significa recriar o hábito de cooperação entre Estados que existia no terceiro trimestre do século 20. A outra opção são as crises recorrentes que levam a distúrbios políticos e econômicos. (Gerald Holtham é ex-diretor do Instituto de Pesquisa de Política Pública) Tradução: Eloise De Vylder