domingo, 8 de março de 2009

Entrevista com a historiadora Mary Del Priore

Entrevista A ´sinhazinha´ continua viva dentro da mulher brasileira Mary Del Priore afirma que é preciso pensar na complementaridade entre os sexos: ´Não queremos ser homens de saias´ A história das mulheres não é um caminho progressivo, mas uma estrada juncada de obstáculos, resistências e ultrapassagens. A análise é da historiadora Mary Del Priore que, apesar de admitir os avanços na trajetória da mulher brasileira, diz: ´A sinhazinha continua, bem viva, dentro dela´No seu livro ´História das Mulheres no Brasil´, a senhora mostra a evolução da mulher na sociedade brasileira. O que ainda resta das ´sinhazinhas´ no imaginário da mulher brasileira atual?A história das mulheres não é um caminho progressivo, mas, sim, uma estrada juncada de obstáculos, resistências e ultrapassagens. A brasileira de hoje conquistou o espaço para estudar, trabalhar e dispor de sua sexualidade, sem entraves. Ou seja, ela não quer mais ser a sinhazinha. Mas ela também lida mal com a solidão, a competição e as responsabilidades advindas das conquistas precedentes: ´produções independentes´, a obrigação de prover a casa e o segundo turno de trabalho doméstico. Além disso, não abre mão de se cuidar para continuar a parecer uma princesa. Ou seja, a sinhazinha continua, bem viva, dentro dela.Historicamente, sobretudo pela ótica cristã, a mulher foi vista com inferioridade diante de um mundo masculinizado. O que vem mudando nesta realidade?Herdamos dois mil anos de tradição judaico-cristã da qual é difícil livrar-se. Sobretudo num país onde o descaso com a educação não ajuda a formar cidadãos. Quando não se tem consciência da própria inferioridade, é mais complicado lutar contra ela. Contudo, as mudanças se impõem. Mais e mais mulheres estão em postos de trabalho, temos cerca de 10% de representantes mulheres na Câmara e no Senado, e, nas universidades, o número de mulheres formadas é maior do que o dos homens. As condições materiais de vida estão realmente mudadas.Então, onde falta avançar?O problema é a subjetividade feminina? Como melhorar a auto-estima da mulher brasileira? Lutando contra a sua desvalorização. Lutando contra a imagem do ´xuxuzinho, da mulher-melancia e da gostosona´ que coisificam a mulher. O triste é que muitas gostam desta representação. E alimentam esta mentalidade nos filhos e maridos. E o que dizer de um país mestiço e mulato que só tem apresentadoras de televisão louras, ainda que falsas?! Como fica a auto-estima de nossas crianças?A mulher não tinha liberdade sobre o seu próprio corpo. Quando esta situação começou a mudar?O grande marco é o século XIX, momento em que o trabalho feminino passa da vida privada à pública. As brasileiras sempre trabalharam, e muito, lutando por sua sobrevivência e de seus familiares. Com a industrialização e o crescimento dos serviços, tal trabalho passou a ser feito ´fora´. Em São Paulo, por exemplo, as mulheres foram 90% da força de trabalho na indústria têxtil aos fins do Império. Mas, além da autonomia financeira, foi preciso conquistar aquela sexual. Não era possível se matar de trabalhar para sustentar uma família de 7,8 ou 10 filhos. A grande clivagem chega nos anos 70 com a difusão da pílula anticoncepcional. Ela é que deu a verdadeira liberdade para as mulheres. Antes de serem vítimas do pai, do marido ou do irmão, as mulheres foram vítimas de seus próprios corpos.E como se deu a luta no campo político e dos direitos individuais, como o voto que veio em 1932?Vale a pena recordar alguns marcos desta luta: só em 1879, as mulheres têm autorização do governo para freqüentar instituições do ensino superior, pelo que foram ridicularizadas. Em 1887, formou-se a primeira médica brasileira, Rita Lobato Velho. Em 1885, num romance intitulado Memórias de Marta, Júlia Lopes de Almeida denunciava pioneiramente a dificuldades da vida das mulheres pobres. Em 1917, a professora Leolinda Daltro liderou uma passeata exigindo a extensão do voto às mulheres. No ano o de 1922 foi fundada a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino. Em 1929 é eleita a primeira prefeita: Alzira de Souza, em Lages, Rio Grande do Norte. Em 1931, criada a Cruzada Feminista Brasileira e em 32, no governo de Getúlio Vargas, o novo código eleitoral institui o voto feminino. E só em 1945, uma Carta das Nações Unidas, reconheceu a igualdade de direitos entre homens e mulheres.O que representou essa conquista?No campo da política, muito pouco. A imensa maioria das mulheres que elegemos para nos representar não tem agendas voltadas para a educação das meninas pobres, a prevenção da gravidez precoce, o aborto, a luta contra a presença das mulheres no tráfico de drogas ou a igualdade salarial entre homens e mulheres. Elas preferem copiar os políticos que criticavam antes de ser eleitas. Mas, nos cargos, acabam roubando e corrompendo com a mesma cara de pau que eles têm. Nenhuma delas ergueu a bandeira da ética, se diferenciando do mar de lama em que está mergulhada a vida política.Qual a contribuição do movimento feminista da década de 1960 para a identidade atual da mulher?Foi importante, mas perdeu a força ao buscar a igualdade entre homens e mulheres. Não queremos ser homens de saias. Prefiro pensar nas complementaridades entre os sexos. Homens possuem liderança? Pois as mulheres têm o dom da negociação. Homens são agressivos, mulheres são conciliadoras...e daí por diante. Trabalhando juntos, naquilo que temos de diferente, singular e específico, teremos resultados mais ricos e eficientes do que buscando, a todo custo, uma igualdade que não deu certo. E que biologicamente não existe.Como a mulher brasileira vem acompanhando essas transformações?Enquanto elas continuarem a evitar que os maridos lavem a louça, a desqualificar as namoradas dos filhos quando tomam um fora, a chamar as homossexuais de ´sapatonas´, a aceitar a vulgaridade na TV e nas bancas de jornais, vai ser difícil adquirir a consciência necessária para promover mudanças. A mulher brasileira, no fundo, é machista.A senhora considera pequena a participação das mulheres na política brasileira?Não é pequena, não. Temos mais de 10% de representantes. O problema é a qualidade da representação. Há poucas políticas com agendas que façam a diferença, dos seus pares do outro sexo. Em geral, são tão demagogas e corruptas quanto eles.Existe uma relação cultural?Não. Tem raízes no baixíssimo investimento na educação. Pessoas educadas e informadas não vêem qualquer empecilho em votar em mulheres. E cidadãs bem formadas, uma vez eleitas, sabem dar contribuição de qualidade para a sua coletividade e ao seu País.Essa realidade é inerente a toda América Latina?A América Espanhola tem uma tradição de maior investimento no ensino, do que nós. A Argentina, para ficar num exemplo, logo depois de sua Independência, em 1816, criou logo um sistema nacional de educação, apoiado na escola pública e nas bibliotecas. Só fomos fazer isso, cento e vinte anos mais tarde. O sentimento de cidadania, com direitos e deveres é mais forte, onde há nível mais elevado de educação.O Brasil, principalmente o Nordeste, é conhecido por sua herança machista. O povo está preparado para eleger uma mulher para presidente da República?O Nordeste tem números assustadores de violência contra a mulher, mas o machismo existe no Brasil todo. O problema não é eleger um homem ou uma mulher, mas alguém que faça um verdadeiro trabalho de saneamento na educação e na saúde. Basta de populismo!Na sua opinião, quais são as principais conquistas das mulheres até hoje?No campo das realizações profissionais e afetivas, há, de fato, muitas conquistas. Há inúmeras brasileiras que conseguem conciliar trabalho e família, afeto e responsabilidade. Elas atingiram o equilíbrio sutil, mas necessário, entre a vida pública e a vida privada. Manter a família unida, valorizar as tradições, estando, igualmente, receptivas à inovações são desafios que muitas de nós conseguem preencher. O importante seria democratizar estas oportunidades para mulheres de camadas desfavorecidas, que sem a ajuda de creches, escolas de qualidade e hospitais adequados, têm menos possibilidades de atingir este equilíbrio.O livro´História do Amor no Brasil´ fala de como foram construídas as relações afetivas no Brasil. O que mudou ao longo desses anos as relações afetivas?Em toda a história do amor, o casamento e a sexualidade estiveram sob controle; controle da Igreja, da família, da comunidade. Só o sentimento, apesar de todos os constrangimentos, continuava livre. Podia-se obrigar indivíduos a viver com alguém, a deitar com alguém, mas não a amar alguém. As coisas mudaram bastante. Apesar dos riscos de doenças como a Aids, a sexualidade foi desembaraçada da mão da Igreja, separada da procriação graças aos progressos médicos, e mais, desculpabilizada pela psicanálise e cada vez mais exaltada. Hoje, a ausência de desejo é que é culpada. O casamento, fundado sobre o amor, não é mais obrigatório e escapa às estratégias religiosas ou familiares; o divórcio não é mais vergonhoso e os casais têm o mesmo tratamento perante a lei. A realização pessoal se coloca acima de tudo: recusamos a frustração e a culpabilização. Mas tudo isto são conquistas ou armadilhas? Os historiadores de amanhã o dirão. FIQUE POR DENTROQuem é Mary Del PrioreRenomada historiadora e escritora cuja obra tem como foco o comportamento e o cotidiano da vida do povo brasileiro. Possui graduação em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1983) e doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo, especialização na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (1993) e pós-doutorado na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (1996). Atualmente é professora do programa de mestrado em História da Universidade Salgado de Oliveira. Autora de mais de 22 livros dentre outros: ´História do Amor no Brasil´ e ´História das Mulheres no Brasil´.Iracema SalesRepórter

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