História
05.03.2012 16:43
Reencontro com a história
Por Emiliano José*
Penso que o lugar do
ex-presidente João Goulart na história do Brasil começa a ganhar
contornos mais nítidos. Fui alertado pela primeira vez sobre os
equívocos históricos em torno do papel dele quando me deparei há alguns
anos com o livro de Moniz Bandeira: “O governo Goulart – as lutas
sociais no Brasil: 1961-1964”, numa edição da Civilização Brasileira, de
1977. Ali, comecei a repensar não só a singularidade da atuação do
ex-presidente, como de toda uma geração que lutou, a seu modo, para
construir um país soberano e mais justo.
Waldir Pires, protagonista político do Brasil desde o início dos anos
50, foi outro a me fazer repensar o papel do ex-presidente. Já não eram
mais leituras, mas o testemunho pessoal de quem conviveu com Goulart até
os últimos instantes de sua presença na presidência da República, e que
o acompanhou em sua dura experiência de exílio, vivida também por
Waldir. Agora, fui surpreendido com uma extraordinária biografia: “João
Goulart”, também da Civilização Brasileira, de 2011, do professor Jorge
Ferreira, da Universidade Federal Fluminense, já em terceira edição.
Não há a pretensão de produzir uma resenha. O livro já é conhecido.
Limito-me, aqui, a impressões, quem sabe a autocríticas, a revisões
históricas provocadas pela riqueza do livro. Não tenho, com esse texto,
quaisquer pretensões acadêmicas. Diria que ele tem mais uma face
militante, de quem está imerso na política e que sobre ela procura
refletir para não se ver engolfado por cláusulas pétreas conceituais e
nem pelos modismos do momento, o que não é fácil. Quem está na política,
corre os dois riscos, e não sei qual o mais prejudicial. Talvez, a
rigor, nunca consigamos nos livrar deles.
Goulart, se me lembro bem, aparecia para nós, os que havíamos aderido à
luta armada contra a ditadura, com nossas múltiplas concepções
estratégicas e táticas, como um reformista da pior espécie – e por
reformista entendia-se, então, tanto aqueles que se vinculavam ao PCB, o
Partidão, quanto um político burguês, como Goulart. Ou, se quisermos ir
adiante na caracterização, como um populista. O populismo,
desenvolvendo-se como conceito histórico, pretendeu dar conta de
múltiplas experiências da América do Sul, especialmente do Brasil e
Argentina, com destaque para as figuras de Vargas e Perón.
Das leituras que fazíamos então, em geral muito aligeiradas, quase
restritas a orelhas ou a comentários de terceiros, surgiu com destaque,
em 1968, o livro de Octavio Ianni, O colapso do populismo no Brasil. A
interpretação dele sobre o golpe de 1964 virou uma espécie de cláusula
pétrea – tanto as causas estruturais quanto o diagnóstico dos
personagens passaram a ser vistos a partir daquela visão, ao menos para
nós, os que divergíamos da linha do Partidão. E o termo populismo passou
a explicar o período da emergência das massas urbanas, da
industrialização do Brasil, e de manipulação dos trabalhadores por parte
das lideranças políticas – lideranças populistas, naturalmente.
Já disse: Moniz Bandeira me salvou dessa armadilha. Me livrou da
cláusula pétrea. Quem disse que a idéia de populismo dá conta de tudo e
que pode enquadrar cada personagem daquele rico período? Não pode. Não
consegue ser um conceito totalizante, por obviedade. Carrega uma boa
dose de visão estruturalista, calcada numa abordagem quase estereotipada
da luta de classes e que, ao mesmo tempo, subestima a própria
capacidade da classe operária por dá-la como absolutamente susceptível à
manipulação de líderes que não tinham quaisquer compromissos com a
melhoria real das condições de vida do povo, salvo para aproveitar-se
dele. Curiosamente, uma abordagem marxista que desconsiderava a
possibilidade de intervenção política da classe operária, tão
subserviente aos líderes populistas.
O livro de Jorge Ferreira é outra excepcional contribuição ao
entendimento do período, e repõe a figura de Goulart com outro olhar,
como um político profundamente comprometido e ligado aos trabalhadores
durante toda sua vida, sem desconhecer suas contradições, ou suas
ambigüidades, como ele a chama. Contradições que não faltam a nenhuma
pessoa humana e naturalmente a nenhuma liderança política.
Ajudou-me em minha jornada de compreensão do Brasil recente, a entender
como foi possível, em tão pouco tempo, construir-se um País industrial, à
base de um projeto que pressupunha também distribuição de renda,
projeto que fixou seus objetivos mais claramente a partir de 1950,
quando Goulart começa a despontar com uma liderança profundamente
vinculada aos trabalhadores, para além de sua condição pessoal. Goulart
era um homem rico, como se sabe, e sempre teve talento para ganhar
dinheiro, como a biografia revela. E revela, também, que nunca se
apropriou do dinheiro público para proveito pessoal.
Esse projeto de construção de um Brasil soberano e socialmente justo,
pretensão do governo Goulart, especialmente em sua fase final, que dava
seqüência ao projeto de Vargas, foi interrompido pelo golpe militar –
golpe que teve o apoio de políticos de direita, da Igreja Católica, e de
vastos setores das camadas médias, assustadas com a movimentação
operária e popular, com as articulações e movimentos de políticos de
esquerda, como Brizola e Julião, para citar dois deles. A discussão
sobre as causas do golpe ainda se arrastarão por algum tempo,
certamente.
É inegável, no entanto, que Goulart, como diria Darcy Ribeiro, cai por
seus méritos, e não por seus defeitos. Na fase final de seu governo,
viu-se numa encruzilhada: ou rendia-se à proposta dos militares de
afastar-se dos comunistas, de Arraes, de Julião, de Brizola e tantos
outros setores de esquerda, ou, então, levava à frente a idéia de
implantar as chamadas reformas de base, entre as quais a reforma
agrária. Com o comício de 13 de março de 1964, ele revelou ao país sua
posição.
Parecia que a presença daquelas 200 mil pessoas no Comício da Central do
Brasil evidenciava uma correlação de forças favorável às reformas de
base. Dali em diante, tudo correu aceleradamente, e Goulart cai no dia
1º de abril, e segue logo depois para o Uruguai, certo de que não havia
quaisquer condições para a resistência, nem entre os militares, nem
entre as forças de esquerda, como se comprovou.
Durante algum tempo, uma historiografia precária, fundada numa visão
individualista da história, pretendeu culpá-lo pela não resistência. Os
fatos que se seguiram demonstraram o quanto era inconsistente essa
interpretação. O chamado esquema militar do governo não existia – e aí,
sem dúvida, houve falhas, e graves, de Goulart – e não havia
praticamente nada de organização popular para o enfrentamento do golpe –
nem os “grupos dos onze” de Brizola, nem as ligas camponesas de Julião,
nem as forças sindicais, nada. Os golpistas e os EUA haviam se
preparado para uma resistência prolongada. Equivocaram-se. Havia mais
barulho que realidade.
É evidente que a movimentação das massas era ampla. Que o proletariado
urbano dava seus mais fortes sinais de organização do pós-guerra. Que
havia um início de movimentação de trabalhadores e camponeses no campo.
Nada, no entanto, que autorizasse a visão triunfalista de um Brizola, de
um Julião, até de um Prestes. Goulart, naquele 13 de março, já estava
isolado. O golpe caminhava celeremente, tinha bases sociais, e apesar de
ter sido deflagrado por um general desacreditado, Olímpio Mourão Filho,
e parecer sem força nas primeiras horas, consolidou-se diante da
fraqueza e desorganização das chamadas forças populares e de esquerda.
A revolução faltou ao encontro. Não resisto à tentação de recuperar
título de um livro de Daniel Aarão Reis Filho. Dito de outra maneira, o
que chamávamos revolução brasileira, nossa musa inspiradora, sofria uma
derrota de grande impacto. Um impacto de 21 anos. A democracia só
voltaria em 1985. Vivemos, de lá até os dias de hoje, o maior período
democrático de nossa história, que devemos celebrar.
E quero dizer, ainda, para brincar com as palavras, se me permitirem,
que a revolução voltou a nos encontrar. E pelos caminhos da democracia,
do debate de projetos, e da consolidação de um desses projetos, ao menos
nesses últimos quase dez anos, desde que Lula venceu as eleições, por
decisão livre do povo brasileiro.
O projeto neoliberal foi derrotado. E desenvolve-se, desde lá, o que
alguns importantes autores, como Juarez Guimarães, chamam revolução
democrática. E há, no curso dessa revolução, onde se afirmam direitos
democráticos, onde há distribuição de renda como nunca houvera antes,
onde há emprego, onde se afirma a soberania do País, um reencontro de
gerações. Não sei se ironia da história, mas pode-se afirmar que muito
daquilo que foi sonhado por Goulart, por aquele projeto generoso dos
anos 50, está em curso hoje.
Finalizo, embora desnecessário pelo valor intrínseco da obra,
agradecendo ao professor Jorge Ferreira. É uma bela obra. Para além
desses aspectos mais gerais, de natureza política, dá uma lição de como
fazer uma biografia. O indivíduo surge com toda sua complexidade,
revelado em sua singularidade, em sua humanidade, mas nunca desconectado
do quadro histórico mais amplo.
No singular, entre tantas revelações, é dramática a revelação de que
Goulart morreu de tristeza, um mal geral que Freud a seu modo detectou.
Um mal específico, e dele me falou também Waldir, que costuma afetar os
exilados quando não conseguem voltar à sua terra natal. Nunca os
militares permitiram que Goulart pisasse novamente o seu solo. Só pôde
fazê-lo morto. Um homem a quem o País deve muito, com sua memória aos
poucos recuperada.
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