Livro questiona a mitificação de Zumbi
Para autores, feriado da Consciência Negra (20/11), celebrado no dia da morte do quilombola, esvazia 13 de MaioEditora Três Estrelas lança ensaio polêmico sobre como imagem do herói tornou-se ícone de todas as minorias
Edson Silva/Folhapress | ||
Ricardo Alexandre Ferreira (em pé) e Jean Marcel França |
EDITOR DA “ILUSTRÍSSIMA”
A
história absolveu Zumbi. Mais que isso, deu-lhe um lugar de destaque no
panteão nacional: 315 anos depois da queda de Palmares, aniquilado pelo
bandeirante Domingos Jorge Velho, o herói negro dá nome a tudo, de
universidade a banda de rock.
O
dia de sua morte, 20 de novembro, é um feriado cada vez mais celebrado
-o dia da consciência negra vem contribuindo para o "esvaziamento" do 13
de maio (Abolição) e sua protagonista branca, a princesa Isabel.
Em
abril, o Supremo Tribunal Federal referendou as cotas raciais nas
universidades, uma vitória inequívoca dos movimentos que têm em Zumbi o
seu mártir.
A
unanimidade do mito, porém, é bastante recente. E, como mostram os
autores do recém-lançado "Três Vezes Zumbi", os historiadores Jean
Marcel Carvalho França e Ricardo Alexandre Ferreira, as feições do herói
mudam conforme as conveniências ideológicas de cada geração.
Ao
mostrar como uns e outros "construíram" seus próprios Zumbis, eles
lançam uma fagulha de provocação às vésperas do 13 de Maio. Ou, como
disse Ferreira à Folha, põem "uma pulga atrás da orelha" do leitor dos
livros de história, para não comprar o que lê pelo valor de face.
Na
tese dos autores, a "canonização" recente do líder quilombola, que o
transformou num porta-bandeira dos oprimidos, é uma "construção"
histórica. A ausência de dados biográficos sobre um homem cuja
existência deixou poucas pistas facilitou a inclusão de capítulos
fantasiosos na narrativa.
Mais
pop do que nunca na era Lula, Zumbi tem figurino apropriado para o
momento político -daí, talvez, o interesse recente em sua figura. "É um
outro Brasil que está contando o seu passado, inventando o seu passado",
disse França à Folha. "A elite branca tradicional de Higienópolis já inventou o seu passado há muito tempo. Já tem a mitologia."
Como
exemplo da conversão de Zumbi em ícone de todo tipo de minorias, França
e Teixeira citam a tese de Luiz Mott, do Grupo Gay da Bahia, que
retratou Zumbi como homossexual.
Esse "anacronismo", escrevem os autores, "faria um historiador como Lucien Febvre revirar no túmulo".
Mott disse à Folha que
não teve "o beneficio da dúvida" e que os autores "nem desconstruíram
sequer uma das cinco pistas" apresentadas por ele de que Zumbi seria
gay. Não há, diz, "nenhuma prova de que o mitológico líder quilombola
era heterossexual". O antropólogo diz que França e Teixeira estão
"dominados pela ideologia heteronormativa".
ESQUERDA
O
elo com a causa gay, mostram eles, vem de uma "construção" mais ampla:
no século 20, sua rebeldia vinha a calhar como herói romântico da
esquerda. França e Teixeira criticam o messianismo de autores como Décio
Freitas e Joel Rufino dos Santos, que fixaram a atual "perspectiva
verdadeira" de Zumbi.
Historiadores
ligados ao movimento negro também são questionados. França e Teixeira
recriminam o endosso de Flávio dos Santos Gomes a passagens fantasiosas
escritas por Freitas, baseadas "em supostas cartas que só ele [Freitas]
leu", como aquela que descreveria a infância de Zumbi como coroinha.
O
líder imantado pela esquerda é o terceiro dos três anunciados no
título. Antes dele, vêm o dos séculos 17 e 18, ameaça ao empreendimento
colonial português, e o do século 19, providencialmente posto de lado
pelos bem-pensantes na construção da identidade nacional.
O
mesmo poderia ser feito com outros heróis. Para França, temos fascínio
por figuras "desviantes", como Zumbi ou Tiradentes, e relegamos figuras
"da ordem", como a princesa Isabel. "Não sabemos fazer uma história da
norma."
Provocativo, ensaio mostra construção social do herói negro
JÁ SE FOI O TEMPO EM QUE SE DISTINGUIA "HISTÓRIA" DE "ESTÓRIA", COMO SE A PRIMEIRA FOSSE A VERDADE, E A SEGUNDA, MERA INVENÇÃO"TRÊS VEZES ZUMBI" PROVOCA O LEITOR, MOSTRANDO COMO O EXERCÍCIO DA HISTÓRIA É SOBRETUDO CONSTRUÇÃO SOCIAL
LILIA MORITZ SCHWARCZ
ESPECIAL PARA A FOLHA
Quem
conta um conto aumenta um ponto, e quem narra uma história adiciona
outra; já se foi o tempo em que se distinguia "história" de "estória",
como se a primeira fosse um poço de verdade, e a segunda, mera invenção.
A
história é "filha de seu tempo", nas palavras do historiador J. Le
Goff, e reconstrói fatos a partir de novas perspectivas em diálogo com
seu próprio contexto.
Tendo
à frente tal toada, os historiadores Jean Marcel Carvalho França e
Ricardo Alexandre Ferreira enfrentam esse verdadeiro mito nacional
chamado Zumbi dos Palmares, no livro "Três Vezes Zumbi".
Mais
ainda, mostram como há uma contínua construção desse protagonista, que
acabou, na falta de muitos dados a comprovar sua história, servindo a
inúmeras versões.
Na
literatura colonial, Palmares apareceria como um grupo que lembrava a
Antiguidade clássica, e seu líder, um bravo guerreiro. No século 19, uma
nova geração de intelectuais veria na sobrevivência do quilombo um
empecilho para a trajetória certeira que levava à civilização.
De
lá para cá a história seria outra. Nos anos 1970, na ditadura, Palmares
seria convertido em modelo socialista de luta de classes, e Zumbi, em
"típico" revolucionário.
Mais
recentemente o episódio seria reinterpretado à luz da agenda dos
movimentos sociais, e o herói viraria "um negro oprimido por conta da
raça". Isso para não esquecer de análises atuais que deram uma
identidade gay ao personagem.
Para
dar conta dessa longa travessia, os dois historiadores perpassam
documentos coloniais, textos dos tempos do Império e de inícios do
século 20.
Enumerando
trabalhos e acentos distintos, os autores chegam até o momento
presente, criticando falácias da obra de Décio Freitas ou mesmo
interpretações, segundo eles, muito coadunadas com conclusões prévias e
carentes de verificação.
Nessa ciranda entram nomes consagrados como Joel Rufino, Ronaldo Vainfas, Flavio Gomes e Pedro Funari.
Sem
pretender discutir a oportunidade do balanço, vale questionar, porém, o
suposto ineditismo da conduta. Alguns dos historiadores questionados no
livro foram os primeiros a denunciar o mesmo processo de construção da
memória nacional.
Com
o intuito de fazer esse amplo levantamento, muitas vezes os autores do
livro jogam o bebê com a água do banho: nivelam pesquisas que trazem
novos dados com outras que não passam de obras de divulgação.
Interessante,
também, teria sido explorar outras mídias, para além do famoso filme de
Cacá Diegues ("Quilombo", 1986). As aparições culturais do líder
quilombola podem ser encontradas desde o poema "Zumbi" (1914), do
alagoano Jorge de Lima, até "Arena Conta Zumbi" (1965), texto de Augusto
Boal e Gianfrancesco Guarnieri, com música de Edu Lobo, que faria época
no teatro.
Já
na luta contra o regime militar, lembre-se a VAR-Palmares, grupo cuja
segunda parte do nome rendia uma homenagem ao herói negro.
Nessa
larga circulação de ideias e imagens que vão convertendo Zumbi em
símbolo nacional, contam-se ainda a construção do monumento em homenagem
ao herói, erguido no Rio em 1986, e o tombamento da serra da Barriga,
em novembro de 1985. Essa época, aliás, é também a da explosão dos
bailes "black" no Brasil.
Na
acelerada reinvenção da simbologia de Zumbi, talvez o último passo
fosse explorar a associação do então mito com novas formas de
africanidade.
"Três Vezes Zumbi" provoca o leitor, mostrando como o exercício da história é sobretudo construção social.
Como
comprovam os autores, não se trata de opor um Zumbi real a outros
falsos porque imaginários. Mas também não é o caso de apenas denunciar a
operação: Zumbi é já um personagem carregado de sentidos.
Como
num caleidoscópio, tudo vai virando matéria para novos desenhos do
mito. Nosso herói, faz tempo, já deixou de ser texto para virar pretexto
(e dos bons).
LILIA MORITZ SCHWARCZ é historiadora, professora titular da USP e autora de "O Espetáculo das Raças" (Companhia das Letras), entre outros
TRÊS VEZES ZUMBI
AUTORES Jean Marcel Carvalho França e Ricardo Alexandre Ferreira
EDITORA Três Estrelas
QUANTO R$ 25 (168 págs.)
AVALIAÇÃO bom
AUTORES Jean Marcel Carvalho França e Ricardo Alexandre Ferreira
EDITORA Três Estrelas
QUANTO R$ 25 (168 págs.)
AVALIAÇÃO bom
Saudações históricas,
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