domingo, 30 de março de 2008

A crise do neoliberalismo

A crise do neoliberalismo ou a hora das reformas estruturais criar PDF versão para impressão enviar por e-mail
29-Mar-2008
João RodriguesOs custos da crise devem recair sobre os grupos que beneficiaram das actuais regras. Para isso acontecer precisamos de uma vaga de reformas estruturais. Medidas de emergência para fazer face à crise abrem uma janela de oportunidade para criar o ambiente político e intelectual que pode gerar essa vaga.

Os economistas marxistas Gérard Duménil e Dominique Levy definiram o neoliberalismo como a «expressão ideológica da hegemonia da finança». Para além do aumento da instabilidade, uma das consequências mais nefastas dos processos de liberalização financeira, com o correspondente reforço do papel dos mercados financeiros internacionalizados e dos seus agentes, foi a reafirmação dos interesses dos proprietários que passaram a ter mais mecanismos para captar o «valor» criado nas empresas. Esta é talvez uma das principais explicações para o aumento das desigualdades salariais (resultado do esforço dos accionistas para alinhar os interesses dos gestores e quadros de topo com as suas prioridades), mas também para a quebra generalizada do peso dos salários no rendimento nacional (resultado da pressão para a compressão dos salários dos restantes trabalhadores por forma a «criar» cada vez mais «valor para o accionista»). A ameaça permanente e credível de fuga de capitais, conseguida graças à configuração liberal dos mercados financeiros globalizados, reergueu o famoso «muro do dinheiro» que dificulta ou sabota as reivindicações salariais e os projectos políticos igualitários. Crises recorrentes e aumento das desigualdades são o resultado inevitável do sucesso político de um projecto deliberado de engenharia social que alterou as regras do jogo e as instituições que influenciam quem se apropria do quê e porquê.

A actual crise económica que vem dos EUA mostra a fragilidade deste projecto e a natureza profundamente utópica dos seus esforços para reduzir a sociedade ao nexo mercantil. Começa a generalizar-se a percepção, até há pouco circunscrita a uma minoria, de que o capitalismo purificado não tem como sair espontaneamente da crise sem causar devastação económica e sofrimento social assimetricamente distribuídos. Por outro lado, também se torna evidente que a liberdade excessiva da finança impõe fardos e obrigações indesejáveis ao conjunto da comunidade sob a forma de recessões profundas, desemprego elevado, quebras de rendimento ou onerosas operações de salvamento das instituições financeiras. Por exemplo, a operação de salvamento da Bear Sterns, organizada recentemente pela Reserva Federal norte-americana, levou Martin Wolf, editor do liberal Financial Times, a declarar: «lembrem-se de sexta-feira, 14 de Março de 2008: foi o dia em que o sonho do capitalismo assente no mercado livre global morreu (...) a desregulamentação atingiu os seus limites». É impressionante como a crise e o escrutínio mínimo dos seus mecanismos tornam visíveis realidades que a hegemonia do neoliberalismo tinha tornado invisíveis para tantos: (1) nenhuma economia funciona sem um Estado robusto; (2) não há nada de inevitável na actual configuração dos mercados financeiros; (3) o mesmo Estado que é agora chamado, pelos que dizem gostar dele «mínimo», a intervir por todo o lado, terá que decidir sobre quem irão recair os custos da crise, ou seja, a economia é definitivamente política.

Os custos da crise devem recair sobre os grupos que beneficiaram das actuais regras. Para isso acontecer precisamos de uma vaga de reformas estruturais. Medidas de emergência para fazer face à crise abrem uma janela de oportunidade para criar o ambiente político e intelectual que pode gerar essa vaga. Como sublinhou Karl Polanyi em A Grande Transformação - um livro publicado em 1944 e que é hoje considerado um clássico da economia política crítica - as grandes rupturas são muitas vezes o resultado de um esforço, mais ou menos espontâneo, traduzido em medidas de política pública, para proteger a sociedade da devastação socioeconómica e moral do capitalismo sem freios. Na sua célebre formulação: «o laissez-faire é planeado, o planeamento não». A expressão «reformas estruturais» tem apenas que readquirir as conotações de outras épocas. Quando foi sinónimo de superação de muitos dos arranjos institucionais herdados do capitalismo liberal através de nacionalizações, taxação sobre as operações da finança especulativa, regras muito mais apertadas para a atividade bancária, controlo de capitais, separação entre as várias atividades da finança, etc. Sem querer ser demasiado optimista, existem sinais de que podemos estar num ponto de viragem. Pelo menos no campo das ideias, abre-se agora mais espaço para discutir as virtudes de um regresso à boa tradição da política econômica da esquerda que nunca desistiu de escrutinar, reformar e transformar as instituições fundamentais do capitalismo. Como sublinhou recentemente Vincenç Navarro, «o socialismo não é uma etapa final, mas sim um processo que se constrói e destrói quotidianamente no desenvolvimento das políticas públicas».

João Rodrigues, economista e co-autor do blogue Ladrões de Bicicletas

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