domingo, 20 de junho de 2010
Entrevista de José Saramago em 2008 pela Revista de História
15/12/2008
Imaginação histórica
Em entrevista exclusiva, José Saramago discute o papel da História em sua obra e afirma a imaginação como uma via possível para a narrativa histórica.
Em passagem pelo Brasil para divulgação do seu último livro, José Saramago concedeu esta entrevista exclusiva à Revista de História da Biblioteca Nacional. O escritor português dá um conselho aos historiadores: - A imaginação pode ajudar a aproximar do leitor matérias muitas vezes áridas.
Revista de História - Em alguns livros da década de 1980 (como Memorial do convento e História do cerco de Lisboa), sua narrativa se constrói ao redor de fatos históricos. Só agora, depois de muitos outros, o senhor retorna a uma narração que parte de um acontecimento histórico. Por que este retorno à história, e por que sua ausência das obras mais recentes?
Saramago - Este tipo de questões nunca tem uma explicação fácil. Em primeiro lugar, não se trata, propriamente falando e como algo deliberado, de um regresso à História. Tive conhecimento de um episódio histórico menor que me serviu de ponto de partida para uma interpretação livre dos fatos. Em segundo lugar, sou incapaz de explicar porquê os meus livros imediatamente anteriores “eliminaram” a História. Cada assunto exige um modo de narrar diferente e o autor tem de estar muito atento para não cair no erro de impor à historia que tem para contar formas e estruturas desajustadas dessa exigência.
Revista de História - O ofício de historiador se aproxima daquele do ficcionista. Também ele deve ser um bom contador de histórias, embora precise embasar seu enredo em fontes e documentos. Que conselho um romancista pode dar para um historiador?
Saramago - Que não esquecesse nunca aquele começo de um dos livros do grande George Duby. Disse ele: “Imaginemos que…”. A imaginação, considerada a grande inimiga do rigor histórico, pode ajudar a aproximar do leitor matérias muitas vezes áridas.
Revista de História - A prática de adotar o nome de uma erva como apelido ("sobrenome") era comum entre os pobres na Europa de outros tempos, como lembrou o embaixador Alberto da Costa e Silva no discurso que o homenageou, na ABL. Saramago é também o nome de uma "erva rústica". Como se sente diante desta revelação etimológica, e desta inclusão na companhia dos deserdados da sociedade?
Saramago - As alcunhas nunca são escolhidas pelos próprios, mas sim impostas pelo meio. Não foi a família do meu pai que escolheu ser Saramago, foram as gentes da aldeia que, por razões ignoradas, começaram a tratá-la assim. A inclusão da alcunha de “saramago” no nome que tenho só começou comigo. Quanto à pergunta, limitar-me-ei a dizer que nasci entre os deserdados da sociedade. E não foi pelo nome…
Revista de História - Ao comentar a idéia de "inventar o inventado", o senhor afirmou que isto é sempre possível, desde que se desloque o ponto de onde se ilumina o objeto. Diante do quadro atual por que passa o mundo — que sabemos ser nada animador — que focos de luz o senhor identifica, como potencialmente capazes de reinventar a humanidade?
Saramago - Não se pode reinventar a sociedade ao sabor de critérios que nada teriam que ver com a realidade dos fatos. A deslocação do ponto de onde se ilumina o objecto é tão-somente um processo de avultar ou diminuir a importância do narrado. Faz parte dos instrumentos com que a experiência vai dotando o escritor.
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