quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Populismo e luta de classes no século XXI

Escrito por Armando Pompermaier
  18-Set-2010
 
http://www.correiocidadania.com.br/content/view/5026/9/
 
 
 
No prefácio do Capital, Marx já refletia que o desenvolvimento das forças
produtivas obriga necessariamente a um reajustamento de toda a
superestrutura. É desta forma que os próprios intelectuais marxistas,
inseridos no campo de ação deste nível da realidade, têm necessariamente que
atualizar os seus conceitos em relação às novas demandas que a realidade
objetiva impõe no contexto das transformações infra-estruturais. Uma questão
desconcertante no momento é a forma de conduzir o Estado brasileiro no
governo Lula, onde se pode notar uma fusão de elementos característicos da
política brasileira e latino-americana tradicionais do século XX a elementos
característicos das novas conjunturas do início do século XXI, de modo que
as ações do governo já não se encaixam mais dentro das categorias de análise
usuais.
 
 
 
 
A facilidade com que este governo desmobilizou os movimentos sociais sem que
suas demandas tenham deixado de existir, continuando a ser pressionados
pelas condições objetivas a tomar atitudes que, surpreendentemente, não são
tomadas, é de impressionar. A grande questão que se coloca para mim,
enquanto historiador marxista, é a imobilidade a que puderam chegar as
classes exploradas e oprimidas em um contexto absurdo. A simples análise das
estratégias políticas do governo Lula não me parece ser suficiente para
gerar qualquer explicação plausível. Considero mais útil analisar como essas
estratégias, de modo geral, se relacionam com o nível de desenvolvimento das
forças produtivas, sem a qual nossas categorias de análise dificilmente
conseguirão dar respostas consistentes às atuais demandas de ação política
revolucionária no nível dos movimentos sociais.
 
 
 
Marx defendia que as sociedades não se colocam questões que não possam
responder. Tendo passado parte da tormenta que nos pegou relativamente de
surpresa nas últimas décadas, já com a vista a partir do início da segunda
década do século XXI, creio ser possível começar a ver algum horizonte de
análise teórica marxista sobre o mundo do terceiro milênio que se avoluma à
nossa frente.
 
 
 
A luta de classes ainda é para mim uma categoria de análise de fundamental
importância para compreender a realidade. A precipitação sem pé nem cabeça
de alguns "pensadores" pós-modernistas de que esta não existe se dá devido a
uma incompreensão da realidade decorrente de uma vertiginosa aceleração das
transformações característica da vida moderna em meio a uma revolução
tecnológica em processo. Quer dizer, o resultado da aceleração das
transformações características da modernidade em meio à revolução
tecnológica do final do século XX é a confusão teórica assumida pelos
pós-modernistas como a condição intelectual última da raça humana. No
entanto, não é. Trata-se apenas de uma fase de transição conjuntural.
 
 
 
Na verdade, esta ilusão em alguns de que a luta de classes teria sido
abolida se dá pela inadequação dos conceitos clássicos de luta de classes
dos séculos XIX e XX aplicados anacronicamente à análise das condições
objetivas do século XXI. A contradição que serve de sustentação para a luta
de classes me parece ainda muito sólida: a riqueza das sociedades ainda é
produzida por uma grande maioria enquanto a sua apropriação se dá por uma
pequena minoria de proprietários burgueses. A automatização da produção não
mudou a essência deste fato econômico básico. A grande questão é que
estávamos acostumados a ver este processo no nível das economias nacionais,
o que tem que ser repensado diante da economia globalizada deste novo
século.
 
 
 
Neste contexto, temos alguns fatores de fundamental importância para serem
pensados. A abertura das economias nacionais com as políticas neoliberais
fez com que a produção das multinacionais fosse realizada em países
subdesenvolvidos e periféricos como a China, visando não exatamente a
conquista de seu mercado interno e sim a conquista do mercado internacional,
com a exploração da mão-de-obra sob um regime de trabalho que poderíamos
dizer praticamente de semi-escravidão, onde as taxas de lucro são
maximizadas como não se via há várias décadas no capitalismo. Este é somente
um exemplo breve. O que é importante refletir daí é que, se a produção
industrial é *globalizada*, a apropriação é ainda não somente
*concentrada*nas mãos das mesmas velhas burguesias nacionais, como
também
*centralizada* nos mesmos velhos países imperialistas, numa rede global de
exploração que une classes dominantes e governos de vários países. Quer
dizer, não somente as bases econômicas e políticas, mas também a hierarquia
da estrutura social, estão, de certa forma, globalizadas e têm
necessariamente que ser pensadas em conjunto.
 
 
 
Nas conjunturas econômicas e políticas do novo século, cuja análise marxista
já adquiriu há algum tempo um bom nível de maturidade, o importante é
considerar que a abertura das economias nacionais também fez com que a
democracia burguesa, já extremamente limitada, perdesse quase todo o seu já
pouco sentido. As economias nacionais passam a ser cada vez mais reguladas
por Instituições Financeiras Internacionais como o Banco Mundial, o FMI e
outras como a OMC, aumentado a submissão e a impotência dos governos
nacionais com a desregulamentação dos mercados, onde os governos dos países
"em desenvolvimento", dependentes dos investimentos do capital estrangeiro,
se sujeitam a todos os ditames dos especuladores das bolsas de valores,
assim como às imposições dos países desenvolvidos, que controlam direta ou
indiretamente essas instituições. Isso sem falar que, com as privatizações
que conduziram ao Estado mínimo, tem-se parte dos serviços públicos que
antes eram direitos garantidos por lei controlados por ONG’s que, por sua
vez, são controladas por seus financiadores internacionais.
 
 
 
Sobre as conseqüências sociais desta base econômica, analisadas a partir de
uma perspectiva dialética, o importante é que a visão sobre a luta de
classes – e, consequentemente, as formas de organização e ação da classe
trabalhadora – ainda está ligada ao contexto histórico do nacionalismo do
século XX já em muitos sentidos superado. Se a exploração e a opressão se
organizam e atuam em nível global, a resistência deve também se organizar e
atuar em nível global.
 
 
 
Nesta perspectiva, é de fundamental importância que se leve em consideração
que as novas formas de organização e atuação em nível global vão exigir que
as classes exploradas e oprimidas se relacionem com diferentes culturas,
diferentemente da visão do século XIX, que pressupunha muito ingenuamente
que toda a classe trabalhadora pudesse de alguma forma ser homogênea. Para a
formulação de estratégias de organização e atuação de nível global das
classes exploradas e oprimidas, é indispensável que se vençam as barreiras
culturais, como o preconceito e a incompreensão de línguas estrangeiras,
assim como é necessário que se vença o corporativismo. Mais do que nunca, o
conceito da dialética materialista de unidade da diversidade deve ser
explorado em todas as suas possibilidades críticas revolucionárias na
construção das novas estratégias.
 
 
 
Da mesma forma que novas formulações realistas exigem a análise das
interações dialéticas entre infra e superestrutura, entre os níveis
econômico, social e político da realidade numa perspectiva global, exigem
também uma análise das interações entre as novas formas que assumem os
Estados-Nação em relação ao mundo globalizado. É bom nunca perder de vista
que uma análise dialética deve necessariamente transitar entre o nível
concreto e abstrato, objetivo e subjetivo, geral e específico, desvendando
os tipos de interações estabelecidas entre as partes que compõem a realidade
enquanto um todo, pois grande parte das ilusões da visão pós-modernista vem
justamente da insistência na ilusão de que a realidade é composta puramente
por fragmentos inexoravelmente dispersos sem qualquer conexão entre si.
 
 
 
Desta forma, no que se refere ao contexto político nacional, Lula é uma
espécie de Bernstein brasileiro do século XXI. No entanto, se o alemão do
início do século XX propõe uma conciliação social-democrata com a sociedade
burguesa, contribuindo fortemente para a desmobilização do potencial
revolucionário internacional da classe operária, Lula, que tem um papel
semelhante no século XXI, não é apenas uma atualização do entreguista que o
precede. O petismo/lulismo pode ser visto como a expressão mais acabada de
um projeto social-democrata de conciliação de classes brasileiro que, ao se
utilizar das práticas e concepções desenvolvidas tradicionalmente neste país
para conseguir se adequar às exigências dos especuladores financeiros e aos
receituários das instituições financeiras internacionais, envereda
inevitavelmente para um tipo de reinvenção do populismo.
 
 
 
Em outras palavras, o projeto petista acaba se configurando como a
reinvenção do populismo, adequando-o ao contexto econômico, social e
político do século XXI, abrindo mão do caráter nacionalista característico
do populismo do século XX, em meio às novas conjunturas decorrentes do atual
nível de desenvolvimento das forças produtivas. Serve de base de sustentação
para a centralização geográfica e a concentração social do processo de
acumulação global de capital, amenizando, com diferentes formas de
atualização das velhas práticas políticas populistas, qualquer possível
ímpeto revolucionário da maior parte de uma massa explorada, oprimida e
confusa. Ou ainda, o neopopulismo petista/lulista se configura como uma
atualização das práticas populistas tradicionais de uma conjuntura
nacionalista ao desenvolvimento das forças produtivas que conduziram a um
novo nível de integração global das estruturas econômicas, sociais e
políticas.
 
 
 
Estas são idéias que buscam contribuir para uma análise marxista mais
profunda e ampla das demandas revolucionárias e das condições objetivas em
que se dão as lutas de classes no século XXI. Antes como hoje, e enquanto as
sociedades humanas forem divididas entre explorados e exploradores,
oprimidos e opressores, ecoam os postulados de grandes marxistas como Lênin,
sobre "O que fazer". Como Engels dizia, as sociedades humanas têm apenas
duas opções: "socialismo ou barbárie".
 
 
 
*Armando Pompermaier é professor de História. *

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