Papéis revelam cobranças de Jânio a Fidel e apoio a anticastristas presos
Por trás da ''política externa independente'' e da aproximação com Cuba, documentos expõem divergências entre Brasília e Havana em 1961
14 de agosto de 2011 | 0h 00
Wilson Tosta - O Estado de S.Paulo
ENVIADO ESPECIAL/BRASÍLIA
Meio século depois da renúncia de Jânio Quadros à Presidência da República, na crise aberta por sua decisão de condecorar o líder revolucionário Ernesto Che Guevara em 19 de agosto de 1961, documentos arquivados no Ministério das Relações Exteriores revelam uma relação Brasil-Cuba surpreendentemente tensa na época e forte ativismo brasileiro em defesa de anticastristas presos.
Diferentemente da imagem de aliança incondicional divulgada por conservadores excitados pela Guerra Fria que ficou na história, a correspondência com a embaixada em Havana comprova que, mesmo próximos, os dois governos discutiam divergências sérias na relação bilateral - como a concessão de asilo a oposicionistas na representação na capital cubana - e diferenças de outros países com a ilha. Esses foram assuntos tratados por Che e Jânio no encontro em que o guerrilheiro ganhou a Grã-Cruz da Ordem do Cruzeiro do Sul, mostra documentação obtida pelo Estado.
"O presidente da República, ao receber em Brasília o sr. Guevara, falou-lhe do desagrado com que vemos o fato de não haver sido resolvido o caso dos nossos asilados e fez-lhe entrega de carta sua a esse respeito ao doutor Fidel Castro", relata o MRE em telegrama à embaixada, em 21 de agosto de 1961 - exatos quatro dias antes da renúncia. "Na conversa com Guevara, o presidente transmitiu-lhe o apelo que nos foi formulado pelo encarregado de Negócios do Vaticano aqui no sentido de ser modificado o tratamento hostil que vem sendo dado aos católicos em Cuba, cujos pontos mais graves podem ser assim sintetizados: 1) apropriação pelo Estado das escolas privadas católicas; 2) expulsão em massa de religiosos e religiosas estrangeiros; 3) proibição de comunicações entre os bispos e os fiéis de suas dioceses através de pastorais ou outros documentos eclesiásticos normais. Guevara revelou muita simpatia pela gestão."
Até hoje era sabido que, na "visita de cortesia" de Che a Jânio, a questão dos asilados havia sido debatida, mas não fora revelada contrariedade do presidente brasileiro nem sua carta a Fidel. Falava-se também que Jânio pedira a libertação de 20 padres espanhóis, mas não das gestões brasileiras, a pedido do Vaticano, para modificação da relação entre Igreja Católica e Cuba.
Realizada em momento delicado, poucos meses após a tentativa de desembarque de anticastristas na Baía dos Porcos, a condecoração de Che foi amplamente explorada pelo então governador da Guanabara, Carlos Lacerda (UDN), e agitou militares anticomunistas. Em 24 de agosto, Lacerda declarou ter sido convidado pelo ministro da Justiça, Oscar Pedroso Horta, em nome de Jânio, a dar um golpe. No dia seguinte, ocorreu a renúncia. Com o vice, João Goulart, em viagem à China, a crise se aprofundou.
Para o professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Paulo Vizentini, as contradições entre a postura pública do Brasil, de solidariedade a Cuba, e sua ação diplomática nos bastidores, de discreta tensão com os cubanos, podem ser explicadas pela política externa independente adotada pelo Brasil. "Jânio (com a condecoração a Che) quis fazer uma jogada de mídia, mostrando que o Brasil também não estava contente", diz ele. "Veja bem, não é apoio à revolução cubana, era o direito de Cuba escolher seu caminho. Uma posição um pouco em cima do muro."
Asilo. O problema dos asilados na embaixada em Havana tornara-se ponto relevante na relação. Assim como Argentina, Venezuela e outros países, o Brasil abrigava cubanos temerosos de perseguição - em certa época, chegaram a 127, segundo relatos do encarregado de negócios, Carlos Jacyntho de Barros. Ali havia tanto adeptos do ditador deposto, Fulgêncio Batista, como ex-castristas rompidos com o governo.
"Como consequência do desmantelamento da rede contrarrevolucionária que operava no país, agravou-se mais do que nunca o problema do asilo", relatou o encarregado de Negócios em 28 de abril de 1961. "(...) Mandei colocar grades nos pontos mais vulneráveis da embaixada e acabo de pedir ao ministério melhor distribuição da guarda policial para proteger os fundos (...). Outrossim, estou insistindo junto a esse governo para a mais rápida saída de 50 pessoas, que no momento atual gozam de nossa proteção." Paralelamente à concessão de asilo diplomático, o governo brasileiro agia para tentar libertar ou, pelo menos, evitar a condenação e fuzilamento de oposicionistas do regime.
Em 19 de agosto, mesmo dia em que Jânio condecorou Che, "Exteriores" (como o Itamaraty assinava os comunicados) informou à embaixada em Havana que o próprio chanceler Affonso Arinos de Mello Franco interviera em favor de anticastristas à beira do julgamento. "O ministro (...) dirigiu hoje apelo ao ministro Raúl Roa, pedindo clemência para o estudante Alberto Müller e seus 43 companheiros, que devem ser julgados na próxima segunda-feira", diz o texto.
Outros telegramas determinavam que a embaixada brasileira interviesse em favor de opositores ou desaparecidos. Telegrama de 6 de maio de 1961 dá instruções claras nesse sentido. "Rogo formular apelo a esse governo, no sentido de se atender ao pedido contido na seguinte comunicação (...)." E relatava o caso de um correspondente da Associated Press, Roberto Berrelez, "de nacionalidade norte-americana, ainda detido pelas autoridades cubanas". Seria o único jornalista estrangeiro mantido preso.
A postura brasileira de manter proximidade com Cuba e ao mesmo tempo respeitar as convenções internacionais de asilo gerou protestos contra o Brasil em Havana. Em telegrama de 2 de março de 1961, Carlos Jacyntho de Barros descreveu uma manifestação na porta da representação, feita por cerca de cem pessoas. "(...) Em cartazes, os manifestantes diziam que "enquanto o presidente Jânio Quadros faz uma política progressista, a Embaixada do Brasil concede asilos a sabotadores criminosos"".
Álbum Luiz Alberto Moniz Bandeira
Tensão. Entre Márcio Moreira Alves e Rubem Braga, Jânio conversa com Che Guevara, em visita a Cuba em 1960: condecoração de líder teria sido 'jogada de mídia'
Meio século depois da renúncia de Jânio Quadros à Presidência da República, na crise aberta por sua decisão de condecorar o líder revolucionário Ernesto Che Guevara em 19 de agosto de 1961, documentos arquivados no Ministério das Relações Exteriores revelam uma relação Brasil-Cuba surpreendentemente tensa na época e forte ativismo brasileiro em defesa de anticastristas presos.
Diferentemente da imagem de aliança incondicional divulgada por conservadores excitados pela Guerra Fria que ficou na história, a correspondência com a embaixada em Havana comprova que, mesmo próximos, os dois governos discutiam divergências sérias na relação bilateral - como a concessão de asilo a oposicionistas na representação na capital cubana - e diferenças de outros países com a ilha. Esses foram assuntos tratados por Che e Jânio no encontro em que o guerrilheiro ganhou a Grã-Cruz da Ordem do Cruzeiro do Sul, mostra documentação obtida pelo Estado.
"O presidente da República, ao receber em Brasília o sr. Guevara, falou-lhe do desagrado com que vemos o fato de não haver sido resolvido o caso dos nossos asilados e fez-lhe entrega de carta sua a esse respeito ao doutor Fidel Castro", relata o MRE em telegrama à embaixada, em 21 de agosto de 1961 - exatos quatro dias antes da renúncia. "Na conversa com Guevara, o presidente transmitiu-lhe o apelo que nos foi formulado pelo encarregado de Negócios do Vaticano aqui no sentido de ser modificado o tratamento hostil que vem sendo dado aos católicos em Cuba, cujos pontos mais graves podem ser assim sintetizados: 1) apropriação pelo Estado das escolas privadas católicas; 2) expulsão em massa de religiosos e religiosas estrangeiros; 3) proibição de comunicações entre os bispos e os fiéis de suas dioceses através de pastorais ou outros documentos eclesiásticos normais. Guevara revelou muita simpatia pela gestão."
Até hoje era sabido que, na "visita de cortesia" de Che a Jânio, a questão dos asilados havia sido debatida, mas não fora revelada contrariedade do presidente brasileiro nem sua carta a Fidel. Falava-se também que Jânio pedira a libertação de 20 padres espanhóis, mas não das gestões brasileiras, a pedido do Vaticano, para modificação da relação entre Igreja Católica e Cuba.
Realizada em momento delicado, poucos meses após a tentativa de desembarque de anticastristas na Baía dos Porcos, a condecoração de Che foi amplamente explorada pelo então governador da Guanabara, Carlos Lacerda (UDN), e agitou militares anticomunistas. Em 24 de agosto, Lacerda declarou ter sido convidado pelo ministro da Justiça, Oscar Pedroso Horta, em nome de Jânio, a dar um golpe. No dia seguinte, ocorreu a renúncia. Com o vice, João Goulart, em viagem à China, a crise se aprofundou.
Para o professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Paulo Vizentini, as contradições entre a postura pública do Brasil, de solidariedade a Cuba, e sua ação diplomática nos bastidores, de discreta tensão com os cubanos, podem ser explicadas pela política externa independente adotada pelo Brasil. "Jânio (com a condecoração a Che) quis fazer uma jogada de mídia, mostrando que o Brasil também não estava contente", diz ele. "Veja bem, não é apoio à revolução cubana, era o direito de Cuba escolher seu caminho. Uma posição um pouco em cima do muro."
Asilo. O problema dos asilados na embaixada em Havana tornara-se ponto relevante na relação. Assim como Argentina, Venezuela e outros países, o Brasil abrigava cubanos temerosos de perseguição - em certa época, chegaram a 127, segundo relatos do encarregado de negócios, Carlos Jacyntho de Barros. Ali havia tanto adeptos do ditador deposto, Fulgêncio Batista, como ex-castristas rompidos com o governo.
"Como consequência do desmantelamento da rede contrarrevolucionária que operava no país, agravou-se mais do que nunca o problema do asilo", relatou o encarregado de Negócios em 28 de abril de 1961. "(...) Mandei colocar grades nos pontos mais vulneráveis da embaixada e acabo de pedir ao ministério melhor distribuição da guarda policial para proteger os fundos (...). Outrossim, estou insistindo junto a esse governo para a mais rápida saída de 50 pessoas, que no momento atual gozam de nossa proteção." Paralelamente à concessão de asilo diplomático, o governo brasileiro agia para tentar libertar ou, pelo menos, evitar a condenação e fuzilamento de oposicionistas do regime.
Em 19 de agosto, mesmo dia em que Jânio condecorou Che, "Exteriores" (como o Itamaraty assinava os comunicados) informou à embaixada em Havana que o próprio chanceler Affonso Arinos de Mello Franco interviera em favor de anticastristas à beira do julgamento. "O ministro (...) dirigiu hoje apelo ao ministro Raúl Roa, pedindo clemência para o estudante Alberto Müller e seus 43 companheiros, que devem ser julgados na próxima segunda-feira", diz o texto.
Outros telegramas determinavam que a embaixada brasileira interviesse em favor de opositores ou desaparecidos. Telegrama de 6 de maio de 1961 dá instruções claras nesse sentido. "Rogo formular apelo a esse governo, no sentido de se atender ao pedido contido na seguinte comunicação (...)." E relatava o caso de um correspondente da Associated Press, Roberto Berrelez, "de nacionalidade norte-americana, ainda detido pelas autoridades cubanas". Seria o único jornalista estrangeiro mantido preso.
A postura brasileira de manter proximidade com Cuba e ao mesmo tempo respeitar as convenções internacionais de asilo gerou protestos contra o Brasil em Havana. Em telegrama de 2 de março de 1961, Carlos Jacyntho de Barros descreveu uma manifestação na porta da representação, feita por cerca de cem pessoas. "(...) Em cartazes, os manifestantes diziam que "enquanto o presidente Jânio Quadros faz uma política progressista, a Embaixada do Brasil concede asilos a sabotadores criminosos"".
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Fabrício Augusto Souza Gomes
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