2011: a educação sai às ruas
por Rebecca Freitas e Mathias Rodrigues*
Os meses de agosto e setembro desse ano foram testemunhas de uma série de mobilizações no campo da educação, por todo o país. Quatorze reitorias de universidades, estaduais e federais, ocupadas, greve dos servidores técnico-administrativos das federais e greve dos professores da rede básica de ensino. Para aqueles que achavam que as lutas na educação acabaram, que tinham morrido com o fim do governo de FHC, esses processos demonstram que a realidade é diferente. Mais do que nunca, se faz necessária a defesa da educação pública, gratuita, de qualidade e socialmente referenciada – e o movimento tem mostrado que está disposto a cumprir essa tarefa.
Na UFPR a greve começou com os servidores, e logo aderiram a ela também os estudantes e professores. O movimento tinha pautas locais e nacionais, e, depois de uma ocupação de reitoria por parte dos estudantes, conquistou grandes vitórias na esfera local. Na UEM a ocupação de reitoria foi uma das maiores do país, conquistando apoio da população da cidade e construindo atos com mais de duas mil pessoas, saindo vitoriosa em suas pautas, principalmente no que toca à assistência estudantil. Na UFF, mesmo sob uma reintegração de posse, e, depois de reocupada a reitoria, uma negação truculenta de qualquer negociação, o movimento estudantil conseguiu forçar o debate e conquistar suas pautas.
Na UFSM a reitoria foi ocupada pelos estudantes, e o movimento só não saiu com maiores vitórias pelos entraves que a aliança entre a reitoria, governo e DCE colocava a uma maior radicalização. Na UFSC a ocupação da reitoria conseguiu muitas vitórias, também no campo da assistência estudantil. A UFRB está em greve estudantil e com sua reitoria ocupada já há um mês, e caminha para um fortalecimento das lutas estudantis. Para além das já citadas, também tivemos ocupações de reitoria e greves na UFAL, UFMT, UnB, UFES, UFRGS, UFAM, UFRJ.
As greves e ocupações não se restringiram ao ensino superior. Vimos que os servidores do ensino técnico estavam em greve em mais de 80 Institutos Federais, tendo sido a reitoria da IFBA também ocupada por estudantes. Na educação básica, treze estados aderiram à mobilização, lutando principalmente pelo cumprimento da lei nacional do piso salarial para professores. No Ceará essa luta tem ganhado repercussão nacional, com manifestações com mais de oito mil pessoas, que, ainda que duramente reprimidas pelo estado, permanecem fortes e crescem.
Fica-nos a pergunta: por que tudo isso, e por que agora? Um olhar rápido pelas pautas de reivindicação desses movimentos nos deixa claro que suas demandas estão centradas, majoritariamente, no âmbito local. Acreditamos ser completamente normal alguém se indignar ao se deparar com ausência de laboratórios, salas superlotadas, cursos precarizados, baixos salários e ameaças de privatização. Contudo, é mesmo curioso ver que, ao mesmo tempo, propagandas veiculadas pelo governo federal sobre as ações voltadas ao campo da educação destaquem seu caráter de melhoria, de expansão e democratização – enquanto as condições materiais da realidade da educação brasileira gritam precarização.
Para entender o que de fato se passa, é preciso abrir a cortina do discurso oficial sobre a educação. E isso passa por negar a tentação de enxergar, nessas movimentações pontuais de caráter local, justificativas também apenas pontuais. Se para o governo tudo não passa de um breve problema de gestão, para nós, a existência de lutas intensas em todos os âmbitos da educação – básica, técnica e superior – nos revela justamente o contrário. Enxergamos aqui um traço de projeto de educação, no qual “democratização” se torna sinônimo de precarização, e em que formação humana e qualificação de força de trabalho pretendem significar a mesma coisa.
É bastante conveniente estarmos, nesse ano, debatendo uma proposta de Plano Nacional de Educação (PNE). Esse plano prevê as diretrizes para a educação em todos os seus níveis nos próximos dez anos, e traz propostas de mercantilização para todos os âmbitos da educação em um só documento. Esse fato demonstra claramente a conexão entre os processos de precarização atualmente em curso. Falar do PNE, porém, sem antes remeter ao seu histórico, é, sem dúvida, impossibilitar o entendimento de sua real proposta.
Plano Nacional de Educação: engana o estudante e dá dinheiro pro patrão
O último PNE, vigente de 2001 à 2010, trazia em si uma marcante contradição. Por um lado, carregava muitas das metas e dos projetos defendidos pelos movimentos sociais de educação da década de noventa, que, reunidos no Fórum em Defesa da Educação Pública, elaboraram o chamado PNE da Sociedade Brasileira. Por outro lado, não trazia nenhuma possibilidade de efetivação prática dessas metas. Se a Câmara Federal já havia reduzido a porcentagem do PIB a ser destinada à educação de 10% para 7%, o presidente FHC vetou todo o financiamento necessário. Sem dinheiro, o PNE se tornou um pacote de intenções, sem nenhum reflexo na prática.
Com a eleição do presidente Lula houve uma grande esperança de que esses vetos fossem derrubados. Um dos motes da campanha petista, essa promessa não foi, todavia, levada a cabo. Vimos ao longo dos oito anos de governo Lula, com a não retirada do veto tucano, um crescimento absolutamente irrisório do investimento na educação: de 3,9% do PIB em 2001, chegamos a 4,6% em 2011. Isso fez com que cheguemos ao ano de 2011 com ⅔ das metas do PNE não cumpridas.
As perspectivas do governo Dilma não são nada diferentes do projeto já traçado por FHC e Lula. Iniciar o governo com um corte de R$50 bilhões em investimentos sociais, sendo R$3,5bi referentes à educação, não aponta para uma intenção de investir na área. Isso se reflete também nas propostas trazidas no novo PNE, apresentado esse ano pelo governo. O projeto prevê que se invista 7% do PIB em educação apenas em 2020.
É importante deixar claro que o novo PNE não se dá por um acaso. Ele aponta para um projeto de educação e – por que não? – um projeto de sociedade. Percebemos que, enquanto se investe quase 50% do PIB no pagamento da dívida pública, a educação não representa nem 5%. É uma clara priorização do bolso dos banqueiros, em detrimento da qualidade dos serviços voltados à sociedade. Mais do que isso, apontar para um investimento de 7%, apenas em 2020 – enquanto o movimento organizado no campo da educação aponta que já são necessários 10% esse ano – não é somente uma inversão de prioridades, e sim, na verdade, é apontar para uma outra concepção de educação, não necessariamente pública ou de qualidade e longe de ser socialmente referenciada, para a qual o investimento previsto no novo PNE é mais do que suficiente.
Assim, é necessário que contextualizemos a proposta de financiamento dentro do que é o projeto apresentado pelo governo hoje. Ao longo de todo o governo Lula, vimos a implementação de diversos programas que permitiam que a educação pudesse ser “democratizada” sem investimento, ou seja, precarizada. Ao conjunto desse pacote damos o nome de Reforma Universitária. Olhar para o PNE hoje é ver que aquele conjunto de projetos de lei e decretos formulados ao longo do governo petista deixam de ser políticas de governo para tornarem-se políticas de Estado, que nortearão a educação nos próximos dez anos. No âmbito do ensino superior, entender o atual projeto do PNE implica, assim, em entender de que trata e o que propõe a Reforma Universitária.
Precarizar para privatizar
Reforma Universitária, como o próprio nome diz, é a mudança radical na estrutura das universidades. Uma reforma não é necessariamente negativa para a educação. Porém, na década de 2000, o processo de mudança das nossas Instituições Federais de Ensino Superior (IFES) tem um claro objetivo: a reestruturação da educação para que ela se volte à mera preparação de mão-de-obra barata e qualificada para o mercado de trabalho. A atual reforma, iniciada no governo de Lula da Silva, veio por meio de uma série de medidas fatiadas, ou em forma de projetos de lei ou de decretos.
Além do REUNI, vários projetos fazem parte da reforma em curso. Não podemos, porém, tentar entendê-los de maneira separada de seu contexto, que é a de um grande projeto educacional que corta investimentos públicos e, ao mesmo tempo, transforma a educação em mercadoria. Também é importante lembrar que esses projetos vêm em fatias de maneira proposital. Assim, confundem os movimentos sociais que lutam pela educação, e ainda os impedem de atacar o cerne do problema – que é a própria Reforma Universitária.
A reforma teve seu pontapé inicial no ano de 2004, quando foram legalizadas as Fundações de “Apoio” e as parcerias público-privadas dentro das IFES, por meio da Lei de Inovação Tecnológica e de um decreto. Com isso, foi permitida a entrada da iniciativa privada dentro das universidades federais, algo que acontecia desde o governo de Itamar Franco de maneira irregular. Ao invés de o governo suprir as carências financeiras das instituições com mais recursos públicos, preferiu utilizar recursos privados.
Mas todo “apoio” tem seu custo, e, em troca do investimento financeiro, as empresas podem agora utilizar-se da infra-estrutura, dos técnicos, dos docentes e dos estudantes para pesquisar produtos de maneira mais barata e qualificada. Iniciou-se aí a inversão de valores que hoje é tão visível na educação brasileira. Hoje, a pesquisa e a extensão voltadas à sociedade (ou seja, socialmente referenciadas) são deixadas de lado, em detrimento da iniciativa privada. Perdemos a principal função da universidade pública, a de produzir conhecimentos para a sociedade que a mantém.
Em seguida, ainda em 2004, foi criado o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (SINAES), um sistema avaliativo que iguala instituições particulares e públicas e as julga por critérios produtivistas e meritocráticos, colocando a educação superior dentro da lógica de competitividade imposta pelo mercado. O ENADE é parte desse projeto, e busca, por meio de uma prova nacional, premiar as universidades com melhor resultado, apoiando-se em uma lógica claramente meritocrática, e que não leva em conta as especificidades de cada instituição. O SINAES é, na verdade, uma maneira de o governo federal conseguir controlar a produção e o ensino dentro das universidades federais, assegurando que elas não fujam da lógica do mercado.
O Programa Universidade Para Todos (PROUNI) é mais uma matiz da Reforma Universitária. Sem nenhuma vergonha, o governo federal libera faculdades privadas à beira da falência do pagamento de impostos, em troca de vagas ociosas em seus cursos. O PROUNI deixa clara a inversão de valores na educação brasileira, pois significa o investimento direto de dinheiro público em educação privada. Segundo o ANDES-SN, para cada vaga criada pelo PROUNI, poderiam criar-se três em universidades federais. Queremos que todos os jovens tenham acesso ao ensino superior, mas que estudem em uma universidade pública, gratuita, e de qualidade.
Expansão que esqueceu da qualidade
Talvez a pior faceta da Reforma Universitária seja o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI). Alardeado como o projeto que viria a democratizar o acesso às universidades públicas, nada mais é do que a precarização da educação. Por meio de uma chantagem financeira às universidades, o governo federal exigiu que se aumentasse a proporção aluno/professor para 18/1, e que houvesse um mínimo de 90% de aprovação nos cursos de graduação. Tudo isso sem o devido investimento em infra-estrutura, e na contratação de professores e técnicos.
O REUNI, além de ser um passo bem grande em direção à precarização da educação, ainda precariza o trabalho dos servidores das universidades. Professores e técnicos têm que se desdobrar para cumprir o serviço que deveria ser de novos funcionários efetivos. Para tapar o sol com a peneira, o governo federal apela para contratação de professores substitutos ou temporários, e de funcionários terceirizados. Para completar, vimos no início desse ano o decreto do governo que elevava a proporção de professores substitutos de 10% para 20% do corpo docente total das universidades.
Hoje podemos afirmar – com toda a certeza – que a idéia petista de expansão e de democratização do acesso às universidades está, na verdade, precarizando a educação pública. Nossa luta diária deve manter sempre erguida a bandeira da abertura de mais vagas nas universidades públicas, mas não pode ser contraditória à nossa luta por uma educação realmente de qualidade. Por isso, somos contra a Reforma Universitária. Por isso, somos contra o novo PNE. Queremos 10% do PIB em educação pública já. Queremos o fim das fundações de apoio e das parcerias público-privadas. Queremos contratação imediata de professores e técnicos efetivos. Porque, afinal, queremos uma educação emancipadora, pública, gratuita e de qualidade. À luta!
* Rebecca é estudante de história da UFPR e de música da EMBAP. Mathias é estudante de comunicação social da UFSM. Ambos militam no Coletivo Barricadas Abrem Caminhos.
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