quinta-feira, 26 de julho de 2007
SERES HUMANOS NÃO RENTÁVEIS
SERES HUMANOS NÃO RENTÁVEIS
>
>Ensaio sobre a relação entre história da modernização, crise e
>darwinismo social neo-liberal
>
>Robert Kurz
>
>Nota Prévia: Este texto constitui a versão escrita de uma
>apresentação efectuada a 15.11.2005 em Brunnen, Suiça, nas Jornadas
>Anuais da INTEGRAS (Schweizer Fachverband für Sozial- und
>Heilpädagogik) [Associação Profissional de Pedagogia Médica e
>Social]. O texto não desenvolve ideias novas, mas consegue dar, ainda
>assim, uma perspectiva sobre as afirmações standard na análise da
>crítica do valor e da dissociação, de outro modo só possível de
>encontrar espalhada em diversos artigos ou no contexto da
>argumentação mais extensa dos livros. Os sub-títulos são de
>responsabilidade da redacção da INTEGRAS. As apresentações desta
>jornada serão publicadas brevemente em brochura
>
>
>
>É incontestável: a divisão da sociedade aprofunda-se e assume
>proporções dramáticas; simultaneamente, as instituições que devem
>tratar e administrar o social definham e paralisam devido a
>restrições financeiras. O problema pode apresentar actualmente
>aspectos diferentes em cada país, de acordo com a sua situação
>económica no mercado mundial, as tradições nacionais e as relações
>estruturais; mas a tendência de fundo é em todo o lado a mesma. Se
>uma ordem social agrava permanentemente o catálogo das suas
>exigências e exclui cada vez mais seres humanos, tal constitui um
>indício de que ela atingiu os limites imanentes na sua constituição
>fundamental, como modo de produção e de vida. Trata-se, pois, de uma
>crise estrutural das formas que constituem a base da sua reprodução,
>cegamente pressupostas por norma. Por isso esta crise, como problema
>social total, não pode ser explicada nem vencida por nenhum ponto de
>vista duma actividade específica, dum interesse particular ou duma
>instituição particular. Torna-se necessária, por assim dizer, a vista
>aérea panorâmica da crítica social, para encontrar uma orientação
>na "nova intransparência [Unübersichtlichkeit]" (Habermas).
>
>Em primeiro lugar estamos perante uma grande confusão após a
>derrocada do socialismo. O fim do conflito de sistemas e da guerra-
>fria foi interpretado como vitória definitiva do capitalismo
>ocidental; prometia-se uma nova idade do ouro de prosperidade,
>através da abertura a todo o mundo do mercado, num sistema mundial
>universal unificado. Entretanto é tão violenta a desilusão, com
>sempre novos cortes sociais, crises económicas, guerras civis por
>todo o mundo e barbárie crescente, que se tornou necessária uma
>explicação diferente. Não são os pontos diferentes, mas sim os pontos
>comuns de ambas as sociedades do pós-guerra que são essenciais para
>se conseguir entender este desenvolvimento.
>
>Todas as sociedades modernas são sistemas produtores de mercadorias,
>independentemente de o serem numa constituição mais regulada
>estatalmente (socialismo de estado, keynesianismo) ou na forma do
>mercado mais desenfreado (capitalismo de concorrência neoliberal); e
>o seu sistema de referência comum é o mercado mundial. O mercado
>universal, porém, não existe por si, mas é a esfera funcional dum fim-
>em-si social irracional, que consiste em fazer do valor mais valor
>para fazer do dinheiro mais dinheiro (valorização do capital ou
>acumulação de capital). Só através deste fim em si que no fundo lhe
>está subjacente é que o mercado se tornou universal, enquanto a
>produção de mercadorias nas sociedades pré-modernas tinha apenas
>carácter marginal e a vida era reproduzida na sua maior parte sob
>outras formas. Karl Marx apreendeu esta diferença em duas simples
>fórmulas da relação de mercadoria (M) e dinheiro (D). Enquanto
>simples forma de nicho nos poros das sociedades agrárias a relação
>funcionava segundo a fórmula M-D-M. O dinheiro limitava-se aqui ao
>papel de mediação, estando os objectos da necessidade em forma de
>mercadoria no princípio e no fim da transacção. Na modernidade
>inverte-se a relação, que aqui funciona segundo a fórmula D-M-D'. Os
>próprios objectos concretos da necessidade são apenas o "meio" para a
>valorização do capital-dinheiro, isto é, para a transformação de
>valor (D) em mais valor (D'). Isto significa que a satisfação das
>necessidades é rebaixada a um simples subproduto da valorização e
>torna-se dependente desta. A produção desliga-se dos laços sociais da
>vida, como "economia empresarial" e autonomiza-se como processo
>sistémico anónimo face aos seres humanos, que deixam de ter qualquer
>controle sobre a reprodução da sua própria vida.
>
>Trabalho, valor, valorização
>
>O mecanismo interno desta "economia desvinculada [herausgelösten]"
>(Karl Polanyi) reside na exploração de energia humana ("trabalho").
>Nas sociedades pré-modernas a abstracção trabalho era negativamente
>conotada, como nome colectivo originariamente para as actividades dos
>dependentes (escravos). Apenas na modernidade o trabalho foi
>positivado e universalizado. Aqui o trabalho funciona
>como "substância" (Marx) do valor e da valorização. O dinheiro não é
>senão a representação de um quantum de trabalho. Contudo, a
>actividade nesta forma correspondente à autofinalidade sistémica é
>também desvinculada dos conteúdos da necessidade e portanto
>indiferente face a estes; por isso se trata de "trabalho abstracto"
>(Marx). É indiferente se se fabrica bolachas de chocolate ou granadas
>de mão, o importante é que a energia humana abstracta como "dispêndio
>de nervo, músculo e cérebro" (Marx) possa ser transformada em
>dinheiro (mais-valia). À autofinalidade da valorização corresponde a
>autofinalidade do "trabalho abstracto"; a infindável acumulação de
>valor não é senão a infindável acumulação de trabalho morto
>(passado). Do trabalho tem que se fazer sempre de novo trabalho. Sob
>estas condições o mercado já não representa nenhuma troca entre
>produtores independentes. Ele não passa da esfera da realização da
>mais-valia, isto é, da retransformação de "mais trabalho" em "mais
>dinheiro". Por isso a "liberdade do mercado" é ilusória; esta
>liberdade tem por base a relação coerciva do "trabalho abstracto".
>Aqui a coerção já não é pessoal (como por exemplo na relação de
>senhor e servo), mas uma coerção sistémica anónima de se vender a si
>mesmo como "máquina de dispêndio" de energia humana abstracta (força
>de trabalho) na "economia desvinculada".
>
>Todas as actividades, "atitudes" e comportamentos que são necessários
>para a reprodução da vida, mas que não podem ou dificilmente podem
>ser incluídos no sistema do "trabalho abstracto" e da economia da
>valorização desvinculada foram historicamente dissociados deste e
>delegados nas mulheres como "trabalho de amor" sem custos (o chamado
>trabalho doméstico, a assistência, o acompanhamento, a dedicação, o
>desempenho de funções de amortecimento socio-psíquico etc.). O
>sistema da economia desvinculada é, portanto, desde logo,
>simultaneamente um sistema de "dissociação sexual [geschlechtlichen
>Abspaltung]" (Roswitha Scholz). Daí que a dissociação é uma categoria
>da totalidade, tal como a valorização e o "trabalho abstracto"; a
>relação social total apresenta-se assim como uma relação social
>complexa, intrinsecamente fragmentada. A relação de dissociação não
>se limita a uma determinada esfera (por exemplo, a família), mas
>apresenta-se transversal a todas as áreas da reprodução, incluindo o
>próprio "trabalho abstracto". A "economia da valorização" é definida
>como "estruturalmente masculina". Entretanto, no processo da
>modernização, também as mulheres foram cada vez mais usadas como
>reservatório de força de trabalho. Não, porém, no sentido de uma
>libertação, mas como dupla subordinação, ao "trabalho abstracto" e
>aos momentos dissociados em boa medida considerados de menor valor e
>secundários ("dupla carga"). Até hoje as mulheres têm sido em regra
>mais mal pagas na economia da valorização, continuam a ser pouco
>representadas nas funções de direcção e simultaneamente todo
>o "trabalho de amor" continua a ser considerado da sua competência em
>todos os domínios.
>
>O moderno patriarcado produtor de mercadorias e as suas contradições
>
>Este breve esboço da conexão sistémica que está na base de todas as
>variantes do moderno patriarcado produtor de mercadorias (pois esta é
>a designação mais precisa da sociedade da valorização, incluindo a
>relação de dissociação) revela só por si um monstruoso desaforo. No
>entanto este foi interiorizado e transformado em normalidade
>inquestionável no decurso dum longo processo histórico. Os seres
>humanos têm que ser "rentáveis" no sentido do fim em si do sistema;
>só assim a existência está garantida. Estas exigências foram impostas
>nos primórdios da modernidade desde o século XVI e no capitalismo
>primordial dos séculos XVIII e XIX com coacção sangrenta e contra uma
>longa resistência dos movimentos sociais. Na primeira metade do
>século XX, na época das guerras mundiais industrializadas e das
>crises da economia mundial, o moderno patriarcado produtor de
>mercadorias já parecia fracassar nas suas contradições internas e
>dissolver-se no caos e na barbárie – com manifestação extrema no
>sistema de aniquilação de seres humanos especificamente alemão do
>anti-semitismo exterminador ou nacional-socialismo.
>
>Mas depois da segunda guerra mundial houve o "curto Verão" do milagre
>económico. O desenvolvimento das forças produtivas forçado pela
>concorrência libertou potencialidades nunca sonhadas, que haveriam de
>tornar possível uma "civilização do capitalismo". Apesar da
>racionalização a necessidade de "trabalho abstracto" cresceu como
>nunca antes, porque os bens industriais de luxo, antes limitados a
>uma estreita camada (automóvel, electrónica de uso doméstico e de
>entretenimento etc.), entraram no consumo de massas e os mercados
>alargaram-se bruscamente. Só então é que as mulheres foram integradas
>no trabalho profissional da economia da valorização em grande escala
>social. O consumo de massas, incluindo o turismo de massas etc.,
>transformou-se numa espécie de quase religião. O fim em si irracional
>do sistema parecia reconciliar-se com as necessidades, ainda que numa
>forma adaptada, sob muitos aspectos destrutiva (transporte
>individual, destruição do ambiente etc.). Outro subproduto do boom do
>pós-guerra foi a imparável construção do estado social e de infra-
>estruturas públicas, com um elevado standard de educação, trabalho
>social e cuidados médicos para todos. É verdade que a realidade
>desta "época dourada" da sociedade de valorização do valor e
>dissociação, designada "fordismo", do nome do fabricante americano de
>automóveis Henry Ford, se limitava aos países do núcleo industrial
>ocidental, mas luzia ainda assim uma perspectiva
>de "desenvolvimento", também para o resto do mundo.
>
>Ainda que o desenvolvimento das forças produtivas sob a pressão da
>concorrência do mercado universal seguisse, depois como antes, o
>ditame de transformar trabalho em mais trabalho, e ainda que o brilho
>do "milagre económico" tenha começado a esmaecer já desde os anos
>setenta, o potencial da produtividade foi desde então celebrado
>como "máquina de civilização". Recaíram no passado as muitas gerações
>queimadas sob péssimas condições no "trabalho abstracto". Até a
>libertação da mulher das suas atribuições tradicionais parecia ser
>conseguida em grande medida, apesar da "dupla carga", uma vez que
>elas podiam cada vez mais "ganhar o seu dinheiro", as tarefas
>domésticas eram consideradas susceptíveis de robotização com a
>electrónica e muitos dos domínios dissociados haveriam de ser
>resolvidos em sectores comerciais ou em instituições públicas
>financiadas pelo Estado.
>
>Porém, desde os anos oitenta que a terceira revolução industrial da
>microelectrónica transtornou gravemente os planos de todas estas
>esperanças positivas. Desde logo era o mesmo desenvolvimento da
>produtividade, que obteve tão grandes sucessos na história do
>fordismo no pós-guerra, que constituía simultaneamente a condição da
>crise. Pois quanto maior a produtividade, tanto menor a "substância
>do trabalho" por mercadoria, e portanto tanto menor o valor a que se
>chega no processo da valorização. A contradição está em que cada
>empresa individual não "realiza" imediatamente no mercado a mais-
>valia que criou dentro das suas quatro paredes, realiza sim uma parte
>da mais-valia social total. Esta parte é definida através da
>concorrência, onde uma empresa obtém tanto mais êxito quanto mais
>barata conseguir fazer a sua oferta. Ora o meio para isso é o aumento
>da produtividade. Desde modo, contudo, entram em contradição o meio e
>o fim sociais: uma empresa consegue apropriar-se duma parte tanto
>maior da mais-valia social total quanto mais contribuir para, através
>da elevação da força produtiva, esvaziar e socavar a produção de
>valor enquanto tal. Esta contradição chegou a manifestações
>explosivas sucessivas nas crises históricas. Contudo ela pôde ser
>sempre suplantada porque a queda do valor e com ele da mais-valia por
>mercadoria, com a redução da substância de trabalho, era mais que
>compensada pela simultânea expansão da quantidade de trabalho total,
>com o alargamento dos mercados; com sucesso na era fordista do pós-
>guerra, como se viu.
>
>A revolução microelectrónica e as suas consequências
>
>Na revolução microelectrónica, contudo, esta compensação já não
>funciona. O potencial de racionalização é agora tão grande que
>continuamente se torna supérfluo mais trabalho do que aquele que pode
>ser absorvido adicionalmente na valorização, através do aumento da
>produção de mercadorias. Apesar do aumento da quantidade de
>mercadorias, diminui rapidamente a substância de trabalho
>social "válida" no standard de produtividade da microelectrónica e
>consequentemente a crise assume carácter estrutural. Nas regiões
>periféricas do mercado mundial, na zona do socialismo de Estado do
>Leste e da "desenvolvimento atrasado" do Sul, tal situação já
>conduziu à derrocada social, precisamente porque a microelectrónica
>não pôde ser aplicada com êxito por falta de força de capital e por
>isso a respectiva produção caiu abaixo do standard de produtividade
>mundial (tornando-se, portanto, "não rentável" e deixando de ter
>capacidade de concorrência). Esta situação foi interpretada como
>falhanço próprio das variantes do socialismo de Estado, em vez de
>como parte de uma crise mundial da terceira revolução industrial,
>apesar de o mesmo problema há muito se ter feito notar também no
>Ocidente, como desemprego estrutural de massas; e precisamente por
>causa da forçosa aplicação da microelectrónica.
>
>Desde então a crise atingiu profundamente os centros ocidentais. Cada
>vez mais seres humanos se tornam "não rentáveis" e são excluídos; por
>todo o lado partes inteiras dos países ficam abandonadas, enquanto a
>economia empresarial se globaliza num terreno de rentabilidade que se
>reduz. Na falta de produção de mais-valia real, o capital dinheiro
>refugia-se simultaneamente numa economia de bolhas financeiras. Já
>não é a venda de mercadorias que é decisiva, mas são os ganhos
>diferenciais na circulação de títulos financeiros que suportam uma
>valorização tornada fictícia. Empresas e partes de empresas são
>tratadas como pedaços de carne para trinchar (fusionite e batalhas
>por aquisições, sem investimento real). Na interpretação popular, o
>complexo causal é na maior parte dos casos posto de pernas para o ar,
>responsabilizando erradamente pela miséria, em tom anti-semita, uma
>espécie de "praga de gafanhotos" de especuladores, como se o problema
>não residisse nas próprias contradições do sistema produtor de
>mercadorias. A expansão dos mercados, no contexto do poder de compra
>em queda por falta de capacidade de utilização com êxito de "trabalho
>abstracto" rentável, transforma-se em capacidades excedentárias
>globais, que são sucessivamente desactivadas. É absurdo: pelo facto
>de a produtividade se ter tornado "demasiado elevada" e de poderem
>ser fabricados muitos bens com pouco trabalho, cada vez mais seres
>humanos são rebaixados a um nível de pobreza ainda há pouco tempo
>inimaginável. A divisão da sociedade aprofunda-se cada vez mais; até
>a classe média está a ser entretanto apanhada pelo turbilhão da crise.
>
>O Estado social está a ser desmontado
>
>Não se trata, porém, apenas da desmontagem das capacidades de
>produção não rentáveis mas, na senda desta tendência negativa, também
>o Estado se transforma cada vez mais numa simples administração do
>estado de emergência, porque já não consegue regular a economia
>empresarial globalizada e porque lhe estão a faltar as receitas. Há
>um consenso neoliberal suprapartidário em quase todos os países, que
>executa e legitima ideologicamente a crise do sistema, apenas e só
>contra os seres humanos. Agora se vê que as "aquisições
>civilizatórias" do período do pós-guerra não são auto-sustentáveis,
>mas tinham que ser alimentadas com uma valorização conseguida
>do "trabalho abstracto". Na mesma medida em que este regride, também
>a civilização social é obrigada a recuar. É precisamente sob as
>condições do desemprego de massas e da nova pobreza que o Estado
>social é desmontado e abandona os seus filhos. Estruturas inteiras
>definham e são reduzidas a poucas "regiões metropolitanas". O Estado
>desfaz-se dos serviços públicos, como um nobre arruinado se desfaz
>das pratas da casa. A privatização significa em regra redução à
>capacidade de pagamento privada e portanto o fim das estruturas
>universais. Os caminhos-de-ferro deixam linhas ao abandono, os
>correios fecham estações. No sistema de ensino expande-se o ensino
>para duas classes (conceito de elite), nos serviços de saúde a
>medicina de segunda classe. Agora diz-se de novo e sem qualquer
>cerimónia: tens de morrer mais cedo porque és pobre. Na maior parte
>dos casos são as camadas inferiores da pirâmide social as mais
>duramente atingidas pelas restrições financeiras nos serviços
>públicos, como é o caso das instituições de trabalho social, de
>prestação de cuidados aos deficientes, aos sem abrigo e aos idosos,
>porque dispõem dos lobbies mais fracos.
>
>Após os despedimentos em massa nos sectores comerciais e industriais,
>a crise do Estado social e dos serviços públicos resultante da crise
>da valorização conduz, também nos sectores antes geridos pelo Estado,
>a uma "disponibilização" similar de empregados, que vão engrossar o
>exército dos caídos. Um número cada vez maior de seres humanos vê-se
>obrigado à prestação de serviços baratos e à venda ambulante, ao
>empresariado de miséria etc., na esfera da circulação. As mulheres
>são particularmente afectadas. O discurso sobre o fim do patriarcado
>é desmentido. Por um lado o Estado e a economia delegam novamente as
>tarefas financeiramente exauridas do tratar e do cuidar no
>amplo "trabalho de amor" voluntário feminino. Por outro lado as
>mulheres também são desproporcionadamente afectadas pelo
>desmantelamento dos serviços públicos. Sendo certo que as mulheres
>nos países ocidentais igualaram os homens no que respeita a
>habilitações académicas, o seu emprego, contudo, concentrou-se em
>grande medida nos serviços públicos, precisamente os que agora são
>reduzidos. Elas sofrem massivamente a desvalorização das suas
>qualificações. Em parte os seus lugares são ocupados por mães
>solteiras, tratadas com particular dureza pela administração social,
>que são obrigadas a trabalhar sem qualificações ou com qualificações
>diferentes. Estas, por sua vez, têm que deixar os filhos em centros
>de acolhimento, em que na maior parte dos casos trabalham migrantes
>leste-europeias, ainda mais mal pagas. Também a pobreza pública é em
>primeira linha uma pobreza feminina. A crise da economia da
>valorização e do "trabalho abstracto" é simultaneamente uma crise da
>identidade masculina; no quotidiano da crise cresce dramaticamente a
>violência (familiar) masculina contra as mulheres, enquanto se fecham
>centros de acolhimento e casas de apoio às mulheres.
>
>A hierarquia dos não rentáveis
>
>Quais as consequências do agravamento das condições da crise? Na
>generalidade, pode dizer-se que mais cedo ou mais tarde todos somos
>não rentáveis. Isso é verdade, mas há nesta abstracção uma cilada
>argumentativa, pois assim não são consideradas as diferenciações
>internas. Quanto mais a crise se agrava, mais se agrava também a
>concorrência universal, que é instrumentalizada pela administração da
>crise para jogar uns contra os outros os diversos grupos de caídos.
>Há divisão social não apenas entre os vencedores em número cada vez
>menor e os perdedores em número cada vez maior, mas também entre os
>próprios perdedores. Ainda ocupados e desempregados, mulheres e
>homens, jovens e velhos, herdeiros em perspectiva e filhos de
>indigentes, saudáveis e doentes, não incapacitados e incapacitados,
>nacionais e estrangeiros defrontam-se mutuamente ao nível da pobreza;
>e trata-se de ver "quem é que ainda se safa". Temos que nos
>confrontar com uma hierarquia de não rentabilidade atravessada por
>precárias lutas pela partilha. Mesmo no fundo dessa hierarquia
>encontram-se os absolutamente abandonados, que já nem maus e
>criminosos podem ser: doentes mentais, incapacitados psíquicos e
>físicos, dependentes de assistência e doentes terminais. São em série
>os repetidos escândalos em lares de idosos e de internamento,
>causados também pela desqualificação do pessoal, em número reduzido e
>sob a pressão dos custos e do serviço.
>
>Mesmo no centro das democracias ocorrem uma descivilização e uma
>desumanização estruturais, que até agora se julgavam bem longe, na
>periferia do mercado mundial, donde de qualquer modo já foram
>copiadas em grande parte. Não se trata de nenhum pessimismo, mas de
>uma realidade social em expansão. Sob tais condições, as clássicas
>reacções de crise e ideologias de crise do sexismo, do racismo e do
>anti-semitismo encontram-se na ofensiva por todo o mundo,
>transversais a todas as camadas sociais. Os demónios do século XIX e
>princípio do século XX regressam em forma modificada; não em último
>lugar na forma de uma mentalidade social-darwinista, que tem as suas
>raízes no liberalismo clássico e que por isso pode manter hoje a
>bênção neoliberal na forma completamente desenfreada. "Survival of
>the fittest" é a palavra de ordem repetida de novo e já nada
>discretamente. A lógica de base subjacente reza que não é o
>patriarcado produtor de mercadorias declarado lei natural que chega
>ao fim, mas sim o interesse vital e o direito à vida dos seres
>humanos não rentáveis. Regressa com novas honras a teoria
>da "superpopulação" do liberal hardcore Thomas Malthus do princípio
>do século XIX.
>
>Não foram apenas os nazis que inventaram a divisa assassina da "vida
>que não merece ser vivida" e a levaram às últimas consequências, pelo
>contrário, ela ganhou fôlego a partir de uma larga corrente de
>pensamento social-darwinista, na qual, até à primeira guerra mundial
>e mesmo depois, se incluem, além dos liberais, grande parte da
>esquerda e da social-democracia (o que hoje é completamente
>ignorado). É por isso que o consenso neoliberal suprapartidário pode
>hoje prosseguir novamente o velho consenso social-darwinista até ao
>meio do centro social, e mesmo no interior da esquerda parlamentar:
>uma base legitimadora tácita para as tendências de descivilização da
>administração da crise e das forças que com elas fazem a co-
>administração. Elementos deste pensamento encontram-se não apenas
>entre os bandos da direita radical, que na Alemanha já insultam os
>incapacitados como "devoradores de recursos" e os derrubam das
>cadeiras de rodas, mas também no aparelho da administração social e
>entre os quadros da classe política democrática. Entre os seus
>antepassados inclui-se, por exemplo, o social-democrata austríaco
>Rudolf Goldscheid, que antes da primeira guerra mundial inventou o
>conceito de "economia de seres humanos" e recomendou ao Estado
>uma "criação rentável de seres humanos", pelo que não deveria ser
>alimentado o material humano incapacitado. Precisamente na época de
>uma crise do "trabalho abstracto" e das sobrecapacidades da
>hiperprodução é que é hoje mobilizada de novo a ilusão deste
>revigoramento físico. A aparente suplantação do darwinismo social
>pertence à filosofia do bom tempo do passado milagre económico, que
>agora se enterra silenciosamente.
>
>Resistência e crítica social
>
>Que possibilidades de resistência existem, face a esta grande
>tendência avassaladora de descivilização? Obviamente já não basta uma
>limitada política de lobbie dos enfraquecidos serviços sociais. É um
>facto que não existe um puro determinismo objectivo da crise e que em
>cada situação dada podem ser usadas as margens de manobra imanentes
>para "conseguir algo". Mas isso já só funciona em ligação com um
>amplo movimento social, que seja capaz de começar a suplantar a
>concorrência universal e a impor um conjunto de exigências, mesmo que
>com estas não se supere a crise, a qual radica nas contradições
>sistémicas do "trabalho abstracto" e da sua estrutura de dissociação
>sexual. Para que um tal movimento em geral possa ser possível é
>necessária uma pequena guerra tenaz também no dia a dia, contra o
>pensamento social-darwinista, sexista, racista e anti-semita, em
>todas as suas variantes. Quando a resistência imanente encontrar a
>perspectiva de outro modo de produção e de vida, para lá do
>patriarcado produtor de mercadorias e portanto também para lá do
>antigo socialismo de Estado, as formas de desenvolvimento da crise
>podem abrir-se para além disto, para uma nova sociedade. Esta
>abertura só é possível através da simultânea abertura do horizonte
>mental a uma nova crítica social radical – em vez de se deixar
>consumir completamente pelo dia a dia da crise.
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