Com o materialismo histórico a tiracolo, Marx se propunha não só a exercer alguma influência sobre os destinos do mundo, mas transformá-lo – o que em sua linguagem revolucionária significava, antes, destruí-lo. Desse modo, tal como partiu anteriormente para liquidar com a filosofia, Marx atirou-se contra o mundo da economia burguesa, com ênfase na demolição da propriedade privada e do sistema capitalista de produção.
Mas, para atuar na esfera diretamente política, o passo que deu a seguir – ou paralelamente – foi o de se instrumentalizar nas palavras de ordem do ideário político dos reformistas sociais franceses e, com mais empenho, nas cantilenas igualitaristas de Rousseau, Saint-Simon, Fourier e Proudhon.Foram muitas as idealizações dos reformistas sociais franceses do século 18 e 19, mas pelo menos duas delas ganham destaque e unem todos eles, a saber: 1) a predominância da igualdade completa entre os homens, e 2) a construção de uma sociedade modelar justa e livre. Pode-se dizer, a bem da verdade, que na Grécia antiga Platão já propunha algo semelhante na sua “República” (Nova Cultural, São Paulo, 1997). Mas, no mundo moderno, foi só com a luminosidade de “O Contrato Social” (Ediouro, Rio, 1977), de Rousseau, escrito em 1792, que o projeto ganhou sua formulação detalhada. É sabido que Marx, enquanto leitor e teórico, estimava o apelo dessas idéias e que frequentemente recorria a todas elas, em especial às projeções de Rousseau, Saint-Simon e Fourier, embora os enquadrasse na categoria de “socialistas utópicos” – o que, dependendo das circunstâncias, poderia ser entendido como um elogio ou esculacho.
O “Contrato Social” de Rousseau é um somatório de regras administrativas para se chegar à sociedade civil perfeita. Com ele, o pensador iluminista pretende transformar a sociedade existente, considerada injusta, numa nova sociedade perfeitamente igualitária composta por “homens novos”. Para construir a sociedade ideal, julga necessário de início que se ame as leis criadas a partir de uma vontade coletiva; estas, por sua vez, coordenadas por elite política sábia, a quem todos se obrigam a obedecer por contrato.
Na nova sociedade projetada por Rousseau, o Estado deve controlar todos os aspectos da vida social e econômica dos seus integrantes, pois acredita plenamente que “A virtude é produto do bom governo e os vícios são muito mais decorrentes de mau governo que próprio dos homens”, pois, “os homens são seres sociais por natureza e, na sua unidade, bem conduzidos, serão bons, serão felizes, e essa felicidade fará a felicidade da República”. (De passagem, aqui convém esquecer que o “Contrato” de Rousseau foi a bíblia que orientou Robespierre na condução do “bom governo” da Revolução Francesa de 1789, quando nele instalou o regime fraterno do terror).
Já Saint-Simon, em “O Organizador”, escrito em 1819, e Fourier, na sua “Teoria dos Quatro Movimentos e dos Destinos Gerais”, de 1808, seduzem Marx porque ambos vislumbram de modo bastante imaginoso a criação de sociedades igualitárias. Saint-Simon esboça, preliminarmente e no plano teórico, um entendimento “dialético” da filosofia da história, ao detectar que “no momento em que o sistema feudal e teológico foi definitivamente organizado, já os elementos de um novo sistema social começam a se formar”. Nesse novo sistema social a ser formado, a resultante seria a aparição de uma sociedade em que não haveria a exploração do homem pelo homem e em que seriam eliminados, de um só golpe, o clero, a nobreza e os militares. Um conselho composto por sábios e artistas governaria a sociedade igualitária de Saint-Simon e, sob o amparo do saber, “a humanidade viveria feliz”.
Já no mítico “Falanstério” de Fourier, não concretizado pela ausência de um capitalista para financiá-lo, há uma acentuada preocupação com a vida sexual dos seus habitantes, que em muito seduziu o ideólogo alemão. Nele, formando uma nova ordem “societária”, homens e mulheres trabalhariam em comunidades e fazendas coletivas. A divisão das riquezas estaria subordinada à quantidade e à qualidade de trabalho de cada um – achado que Marx considerou brilhante e logo dele se apropriou. Mas, para Fourier, o ponto principal seria, antes de pensar na criação do “homem novo”, estimular a proliferação do “casal progressivo”, entendendo-se por essa prática a relação amorosa livre do “vínculo conjugal fixo”, a contestar “o sistema opressivo dos amores” vigente na sociedade burguesa.
Mas foi paradoxalmente no anarquista Proudhon – tanto o teórico socialista voltado para a crítica da economia quanto no ativista e organizador político – que Marx encontrou respaldo para suas formulações teóricas. Proudhon não era, simplesmente, um fabricante de sonhos ou um idealizador de sociedades fantásticas. Autodidata, filho de um tanoeiro, tem nas suas projeções críticas, dentro do contexto socialista, o senso possível da realidade. Embora considerado um dos fundadores da sociologia (uma fábrica de fumaça que chama de ciência social), ele desempenhou, de fato, papel importante na organização de associações e movimentos operários franceses, sendo reconhecida sua atuação na revolução de 1848 (quando foi eleito por operários membro da Assembléia Constituinte), além da influência, depois de morto, por força de suas idéias e ação dos seguidores, na Comuna de Paris de 1871 – desempenho este, por motivos óbvios, sonegado perversamente por Marx nas reportagens que formam “As Lutas de Classes na França” e “Guerra Civil na França” (ambos da Global, São Paulo, 1986).
A rejeição, na obra de Proudhon, da heterogestão como sistema comum tanto ao socialismo quanto ao capitalismo, tem plena atualidade e encontra ainda hoje, na crítica do Estado, melhor fundamentação teórica do que as arrogantes parolagens marxistas.
Ademais, Proudhon era dono de uma personalidade mais leal e palatável. Seus métodos de atuação política contrastavam fundamentalmente com os de Marx, e ele soube, como nenhum outro, conduzir a classe operária francesa à posição de destaque no cenário internacional. A um só tempo, Proudhon reconhecia as vantagens da descentralização governamental, operava na criação de instituições financeiras de crédito popular (mutualismo), apontava para o imperativo da autogestão em face das organizações estatais e burocráticas de controle social e, a partir da aplicação da justiça à economia política, teorizava sobre a necessidade de uma democracia operária em oposição à ditadura do proletariado. Marx, para reiterar o óbvio, acompanhou todos os seus passos e tinha no confronto com ele e um seu aliado, Mikhail Bakunin (1814-1876), a razão de ser de sua existência política e teórica (curiosamente, os dois anarquistas que o fizeram cair de quatro).
Talvez pela soma do acima exposto, os estudiosos à procura da gênese do marxismo e isentos das fobias partidárias/ideológicas são concordes em apontar “O que é a propriedade?” como a obra seminal que leva Marx a descobrir as distintas possibilidades do socialismo. Bem examinadas, a crença de Proudhon em que numa sociedade as “forças coletivas” (“forças produtivas”, em Marx) criam uma “razão coletiva”, de um lado, e a crítica à exploração do trabalho que origina a mais-valia, de outro, seriam mais que suficientes para justificar o entusiasmo de Marx em torno da influente obra. Entusiasmo, de resto, não contido inicialmente e assim expresso por Marx em “A Sagrada Família” (Editora Moraes, São Paulo, 1987):
- “Todos os desenvolvimentos da economia política supõem a propriedade. Esta hipótese de base é considerada pela economia política como fato inatacável... E eis Proudhon que submete a propriedade privada, base da economia política, a exame crítico, ao primeiro exame tanto categórico e impetuoso quanto científico. Ai está o grande progresso científico que ele realizou, um progresso que revoluciona a economia política e torna possível, pela primeira vez, uma verdadeira ciência da economia política. A obra de Proudhon é tão importante para a economia moderna quanto a de Sieyès para a política moderna”.
Veremos a seguir a razão pela qual Marx passou a odiar Proudhon.
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