sábado, 6 de novembro de 2010

A derrota provisória e limitada do radicalismo desconcertado

O resultado das eleições não significou, simplesmente, a vitória de um projeto político sobre outro. Aliás, uma das críticas feitas à campanha do Serra foi, justamente, a respeito da ausência de um projeto político próprio. Creio que, para além disso, o resultado das urnas pode ser interpretado, parcialmente, como uma derrota relativa e provisória de um fundamentalismo moral, ideológico e até religioso acionado pelo próprio processo eleitoral, que buscou a desqualificação e demonização absolutos da candidata petista e de seus aliados. 

Essa vitória não foi absoluta, e nem pode ser simplificada como resultado de um simples embate entre um lado "razoável" e outro "radical": pautando-se em análises preconceituosas e sem fundamento sobre o adversário, militantes e simpatizantes do PT, como disse em minha última postagem, também tentaram desqualificar moralmente o candidato José Serra; esta foi uma tática generalizada durante o segundo turno eleitoral.

Mas houve diferenças importantes na adoção dos discursos radicais pelos dois: tendo progressivamente sua imagem colada à do Presidente Lula, Dilma Rousseff rapidamente ultrapassou seu rival nas intenções de voto no primeiro turno, consolidando sua liderança na disputa. Dependente da popularidade do atual Presidente, que já lhe garantiu votos suficientes para sua eleição - embora não no primeiro turno -, a candidata não precisou partir para a baixaria tanto quanto Serra; só o fez, efetivamente, como resposta aos ataques tucanos, percebendo que os últimos surtiram algum efeito (o suficiente para impedir uma vitória avassaladora do PT). Ainda assim, recorreu mais a uma apelação com argumentações políticas programáticas (como a taxação de Serra da alcunha de "privatista"), expondo a biografia política do ex-governador paulista e de seu partido, do que a uma apelação moralmente carregada sobre características pessoais do candidato. 

Partiu de José Serra, portanto, a iniciativa de se apropriar dos sentimentos mais obscuros e primários de seu eleitorado: o ódio religioso, o moralismo, o pavor desmedido e a demonização do adversário. Percebendo que não iria conquistar muitos votos se mantivesse uma associação forçada com o Governo Lula, prendendo-se aos seus sucessos, o tucano deu uma guinada violenta em sua abordagem, e passou a fuzilar o partido rival, aliando-se aos setores mais reacionários da sociedade - a TPF e outras alas religiosas radicais, como setores  evangélicos e católicos. Trouxe à tona a questão do aborto, posando de autoridade no quesito "defesa dos costumes cristãos", e aproveitou uma velha associação entre o PT, o terrorismo, e até o narcotráfico (explorada sob a figura agressiva de Índio da Costa, vice de Serra). É claro que a figura de José Dirceu, o demonizado-mor, não poderia faltar na estratégia do medo encabeçada pela campanha tucana. Os métodos de divulgação de seus ataques foram ainda mais obscuros do que seus conteúdos: e-mails e panfletos apócrifos, com ataques pessoais e manipulações de informações das mais bizonhas.Uma verdadeira campanha subterrânea.

Nos momentos finais da campanha, a sociedade esteve fortemente dividida, graças à exploração desses temas moralistas; Serra consegui arrebanhar o ódio de alguns setores, acionando um "estado de guerra" ideológico. De fato, a sociedade segmentou-se entre direita e esquerda, mas com um forte viés irracional, emotivo e moralista - em que as visões políticas de cada classe e espectro ideológico apareceram nas sombras, fundamentando, de modo muito indireto, os preconceitos morais. A desaprovação de políticas voltadas à população mais pobre foi convertida, assim, em ódio contra um partido "imoral", fisiológico, assistencialista e populista.

O tucano perdeu as eleições mesmo adotando essa estratégia, mas estabeleceu uma trincheira de resistência contra o Governo eleito - ação que o próprio tucano atribuiu a seus militantes, em seu discurso de derrota. Nessa sua rancorosa fala pós-eleitoral, ele não deixa dúvidas: continuará se portando como o baluarte da justiça, da moral e do "bem", tentando centralizar a oposição ao Governo Lula sob sua figura. Quer manter a divisão do país, estabelecida durante sua campanha agressiva, para manter-se enquanto voz política da direita.

Parte da população apoiadora da oposição ficou ainda mais raivosa com sua derrota, e esse sentimento ampliado de ódio continuará a ser explorado pelo ex-governador de São Paulo. Apenas um dia após a vitória da Dilma, proliferaram-se, inclusive, manifestações de xenofobia, primordialmente contra os nordestinos - na suposição de que eles seriam os únicos responsáveis pela vitória do PT nas urnas. Vale lembrar: Dilma ganhou com uma margem de mais de 12 milhões de votos, dos quais 10 milhões foram do NE; ou seja, ela teria ganho o processo eleitoral mesmo se desconsiderássemos todos os votos nordestinos. Aliás, mesmo se considerássemos apenas os estados do Sul e do Sudeste. Vejamos as principais manifestações xenófobas, proliferadas pelo Twitter:



Vemos, assim, que a onda de afirmações negativas deflagradas pela oposição, encabeçada por Serra desde o início da campanha eleitoral, especialmente por vias virtuais, baseia-se em preconceitos infantis e suposições falsas e incoerentes. A manipulação de informações é a base dessa estratégia: graças à distorção de dados, podemos imputar a "máscara do demônio" em nosso adversário, ao mesmo tempo em que protegemos nossa própria imagem. A rotulação de Dilma como "terrorista" é um dos exemplos mais notáveis desse fenômeno: com a manipulação de informações sobre sua participação na resistência à Ditadura Militar, a partir de dados emitidos pelo próprio regime da época, e a camuflagem do fato de o o próprio Serra ter sido classificado como terrorista e fichado pelo militares, faz com que circule a idéia de que a Dilma seja uma "criminosa" - enquanto o Serra seria um aguerrido combatente da Ditadura. Se virmos com clareza sua ficha no DOPS, contudo, não encontraremos tantas diferenças assim entre o Serra e a Dilma de antigamente - ambos vinculados à extrema esquerda, com simpatias pelo regime cubano, e ambos tratados como revolucionários perigosos pelos dirigentes do passado.


É claro que os dois participaram do movimento de resistência de modos distintos: Serra era militante do movimento estudantil e foi um dos fundadores facção esquerdista Ação Popular, com viés católico, e conquistou o cargo de presidente da UNE apoiado pelo Partido Comunista Brasileiro. Indo para o exílio após o golpe, regressou definitivamente ao país somente em 1975. Dilma, por sua vez, militou em um movimento mais aguerrido, que chegou a desenvolver ações violentas contra o Estado - a VAR Palmares .  Foi presa em 1970, torturada nos porões da Ditadura, e liberta dois anos depois. Apesar de suas diferenças, ambos os personagens que concorreram à Presidência foram classificados como "terroristas subversivos" pelo Estado - e esse fato é absolutamente desprezado pelos difamadores de Dilma, de modo que apenas a petista seja vista como extremista e vinculada ao terror político (sendo que não há nenhuma comprovação de que tenha participado diretamente de quaisquer ações armadas).

Esse radicalismo preconceituoso é que foi momentaneamente derrotado, após ter sido conjurado pelos tucanos. Como indiquei no começo, todavia, não verificamos uma derrota absoluta e inexorável desse monstro da intolerância e irracionalidade; na verdade, seria mais correto indicar que ele foi desperto durante a campanha eleitoral, e que, embora não tenha garantido a vitória daquele que o acordou, permanece ativo, mais furioso do que nunca, com a bordoada que levou das urnas. Prova disso é a já mencionada explosão xenófoba, que ainda persiste.

O radicalismo continuará, assim, armando a oposição. Mas terá de enfrentar uma força oposta tão ou mais poderosa, que prega a racionalidade e a moderação, e que saiu forte das urnas: a mesma força que resultou em umlinchamento moral e jurídico dos "twiteiros" xenófobos e na aniquilação das ambições eleitorais de Serra. Pela primeira vez na história brasileira recente, o moralismo radical encontra forte resistência na sociedade: a voz da mídia não é mais absoluta e monolítica, diversificando progressivamente seus posicionamentos, e os demonizados do passado voltam de suas tumbas para se defender das acusações regressas. (Vide o caso de José Dirceu, que, após ser moralmente linchado e até levar bengaladas de um cidadão raivosopeita de frente jornalistas do programa Roda Viva, demonstrando grande habilidade oratória e política - independentemente de seu grau de culpa nos casos mencionados.)

É claro que esse movimento, pela volta da razão e rejeição da demonização de adversários, comporta os seus próprios riscos: no caso, o favorecimento de um conformismo racional e um aumento da banalização de práticas políticas condenáveis, como a corrupção propriamente dita. Afinal, quando neutralizamos as emoções, reduzimos nossa capacidade de nos revoltarmos contra injustiças. É preciso, portanto, saber dosar as emoções, antes de querer sufocá-las, apenas; submetê-las, permanentemente, a uma revisão crítica racional, utilizando-as de acordo com nossas crenças fundamentadas, e sem nos deixarmos dominar por elas.

Acho que temos muito mais a ganhar do que a perder, se julgarmos os participantes da vida pública de modo fundamentado, analisando seus projetos políticos e visão de sociedade, sem cair em preconceitos reducionistas - ou então na armadilha de considerar os nossos representantes como uma massa homogênea (com base no preceito do "todos são iguais"). E parte fundamental desse comportamento razoável depende de um controle relativo sobre nossos impulsos, que, quando dominam as ações, nos tornam especialmente vulneráveis a manipulações de forças políticas obscuras, além de nos cegar para uma visão mais objetiva sobre os acontecimentos. Esperemos que a consciência continue a prevalecer sobre essa barbárie, apesar dos esforços teimosos de parte da oposição em utilizar sentimentos bárbaros (de ódio e pavor, principalmente) para benefício próprio, mesmo após as combativas eleições de outubro.

Pedro Mancini

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