Os cabelos e as mulheres da Amazônia |
Questões de Gênero e Orientação Sexual |
Mauricio Santos Matos |
Sex, 04 de Fevereiro de 2011 12:09 |
Em novembro/2009, após aparar meus cabelos e deixá-los à altura dos ombros, tomei conhecimento de uma campanha de doação de cabelos para a confecção de perucas para mulheres que sofreram escalpelamento nos rios da Amazônia. Àquela época, tomei a decisão de deixá-los crescer, sem aparar um milímetro sequer. Pretendia cortá-los no meio do ano, em junho ou julho/2010. Mas achei que não estavam em um bom tamanho. No último dia 06/01/2011 cortei meus cabelos. No dia seguinte levei ao Espaço Acolher, da Santa Casa do Pará. Anos atrás, quando conheci o drama vivido por ribeirinhas, que tinham o couro cabeludo arrancado pelo eixo do motor de pequenas embarcações, fiquei indignado em saber que havia uma solução, simples e barata, que impediria por completo que esse tipo de acidente voltasse a acontecer. Infelizmente vivemos em um mundo capitalista, onde a sede de lucro comanda as ações dos donos do poder. Infelizmente vivemos em um mundo capitalista, onde a imensa maioria dos governantes, ou faz parte de uma ínfima minoria, proprietária dos meios de produção, ou faz parte de uma casta subserviente a seus desmandos. E as mulheres escalpeladas da Amazônia não fazem parte desse minúsculo círculo. Na verdade, a maioria delas está excluída por completo dos centros de decisão. Há um ditado que diz: "se fosse o homem quem engravidasse, o aborto não seria considerado crime". A lógica é similar, no caso dos escalpelamentos, pois se fosse um acidente que atingisse ricas damas da sociedade, certamente os governantes já teriam, há muito tempo, determinado uma solução definitiva ao problema. E a solução é tão absurdamente simples, que chega a ser inacreditável que muitas mulheres – crianças, jovens, adultas, idosas – sejam vítimas de tal crueldade: basta cobrir o eixo do motor, com um assoalho de madeira ou com uma carenagem metálica. Mas as frágeis vítimas estão lá, no meio da Amazônia. No interior de rios e igarapés que correm distantes dos grandes centros urbanos. Distantes dos olhos e ouvidos do mundo. E isso faz toda a diferença. Em 2009 foi promulgada a Lei 11.970, que altera a Lei 9.537/97, e torna "obrigatório o uso de proteção no motor, eixo e quaisquer outras partes móveis das embarcações que possam promover riscos à integridade física dos passageiros e da tripulação". Na verdade, a lei de 1997 nem precisaria de reforço, pois o seu artigo 4º, inciso V, determina que é atribuição da autoridade marítima "estabelecer a dotação mínima de equipamentos e acessórios de segurança para embarcações e plataformas". Talvez, se fossem os homens – ou as autoridades marítimas – que tivessem seus cabelos arrancados... Esta "pequena" mudança, que foi colocada em prática graças aos conselhos existentes nas comunidades ribeirinhas, aliada a uma campanha de conscientização, foram as responsáveis – ao que tudo indica – pela redução nos casos de escalpelamento. Em 2009, 21 mulheres (boa parte crianças) tiveram seus cabelos arrancados, no Pará. E às vezes, foram junto com orelhas e a pele do rosto e pescoço. Em 2010, somente 07 casos foram registrados na Santa Casa. Isso sem falar dos casos não informados, dos óbitos não contabilizados... Se, de fato, a promulgação da nova Lei e a campanha de esclarecimento foram determinantes para essa drástica diminuição dos acidentes, há de se comemorar. Mas, também, há de se questionar: se era tão simples, porque não foi feito antes? Confirmando a decisão tomada a pouco mais de um ano, cortei e doei meus cabelos. Sei que é um pequeno gesto, minúsculo. Sei que não trará de volta a felicidade em poder observar o simplório ciclo de crescimento e queda de fios de cabelo. Sei que não trará de volta o prazer em banhar-se nas águas dos rios sem sentir dor na fina pele transplantada para o crânio. Sei que não trará de volta a saudável vaidade de pentear e acariciar os cabelos. Mas sei que, de alguma maneira, essa pequena doação colocará um sorriso no rosto de alguém que já passou por muitos sofrimentos, mas não desistiu de lutar. E não desistiu de ser feliz. E sei, também, que se quisermos baixar a zero a quantidade de vítimas, será preciso botar a boca no mundo. Gritar. Berrar o mais alto que puder. Para que acordem os responsáveis pela fiscalização e cumprimento de mais uma lei. Apenas o silêncio pode impedir a felicidade das mulheres dos rios da Amazônia. Não nos calemos, jamais! |
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