sábado, 28 de fevereiro de 2009

Caso Battisti - 2a parte

BATTISTI, O BRASIL E A ITÁLIA: PRINCÍPIOS Bernard-Henri Lévy (*) Será preciso repetir? Não está em questão, aqui, a pessoa de Cesare Battisti. Ignoro se ele cometeu, ou não, os crimes que lhe atribuem e que ele, desde o início, vem negando com veemência. E detesto, de maneira geral, esse terrorismo do qual ele foi propagandista e para o qual, quanto a mim, nunca encontro circunstância atenuante. Isso posto, vejo as reações da imprensa desde que o ministro da Justiça brasileiro, Tarso Genro, decidiu conceder-lhe refúgio político em seu país. Observo, na Itália, esse estranho clima de histeria à ideia de ver escapar um homem que, como milhares de outros, abraçou a tese imbecil da “luta armada”, mas que está sendo transformado (sic) no pior criminoso dos anos de chumbo, na encarnação do horror daqueles anos, na personificação do mal, no diabo. E acho necessário, seja como for, e embora o caso pareça um tanto secundário diante da crise social, da miséria que cresce ou da rebelião na Guadalupe, lembrar mais uma vez certo número de princípios. 1. A Itália é, sem dúvida alguma, uma grande democracia. Acontece, porém, de as mais incontestáveis democracias encerrarem pontos de imperfeição e zonas obscuras. Os Estados Unidos e a pena de morte... A tortura, na França, durante a guerra da Argélia... A Inglaterra minada, décadas a fio, por uma guerra civil irlandesa que parecia só ter solução pelo sangue e pelas leis de exceção... Pois assim também na Itália que, em meio à urgência do combate ao terrorismo dos anos 1970, muniu-se de um arsenal legislativo em que figurava, em especial, uma lei de delação premiada permitindo que um homem, acusando outro, comprasse parcial ou integralmente sua própria impunidade. Foi o que aconteceu com Battisti. Com base no depoimento de arrependidos (entre eles o chefe de seu grupo, o equívoco Pietro Mutti) é que ele foi, há vinte anos, condenado à prisão perpétua. E há nisso, com o distanciamento, quando já saímos do estado de emergência e é chegada a hora de cuidar das feridas, algo que não se pode aceitar. 2. Entre os pontos críticos da democracia italiana, existe essa outra esquisitice que é a lei da contumácia, pela qual um acusado, condenado em ausência e posteriormente apanhado pela justiça, tem sua sentença automaticamente aplicada sem a possibilidade, como no França ou no Brasil, de um novo julgamento. Battisti, quando julgado por contumácia, foi representado por um advogado a quem remetera uma procuração desde seu exílio mexicano? Não, afirma justamente Fred Vargas que, fundamentada em perícias grafológicas, demonstrou aos brasileiros que paira mais que uma dúvida sobre a autenticidade dessa procuração. E, mais que nada, a defesa por meio de advogado jamais irá substituir realmente o comparecimento perante o juiz, frente a frente, palavra contra palavra, de um homem sobre o qual pesam suspeitas tão terríveis. O que quer que tenha feito, ou possa ter feito, trinta anos atrás, o futuro autor de Cargo sentimental [Cargueiro sentimental], ele tinha também o direito de se encontrar, ao menos uma vez, com seus juízes. E porque esse direito não lhe foi oferecido, porque o código penal italiano estipula que ele seria, em caso de extradição, diretamente encaminhado para a prisão vitalícia, é que era justo conceder-lhe, embora o termo pareça inadequado, embora seja chocante, o estatuto de “refugiado político”. 3. Não se enfrenta um problema tão imenso como esse dos anos de chumbo italianos fabricando um monstro, jogando sobre ele a totalidade dos crimes de sua organização, costurando-lhe na pele todo o arsenal dos pecados de uma época da qual ele não foi mais que pálido figurante, produzindo, em suma, um bode expiatório cuja execução judiciária dará a impressão de se estar quite, mediante um mínimo esforço, com a tarefa de rememoração e de luto. Foi isso, no entanto, o que fez Silvio Berlusconi quando, há cinco anos, tirou da cartola esse nome Battisti já esquecido de todos, ou quase todos. É o que tem feito essa parcela da opinião pública italiana que prefere, ao acusar apenas Battisti, apagar a assustadora complexidade de uma época em que se enfrentaram terrorismos de extrema esquerda, terrorismos de extrema direita, além das manobras mafiosas de um Estado que instrumentalizava ambos os lados (vide o filme Il Divo, que Paolo Sorrentino acaba de dedicar ao inoxidável presidente do Conselho daqueles anos e anos seguintes, Guido Andreotti). E isso não é bom nem para a Itália de hoje nem para o combate ao terrorismo de amanhã e nem, em suma, para as vítimas que não terão nada, nada a ganhar se, para liquidar as contas, forem jogados aos leões culpados incertos. Não sei se foi nisso, nesses termos, que pensou o ministro da Justiça do presidente Lula. Mas acho que foi sábia a sua decisão. Acho que é insensato se enfurecer com o Brasil, transformado (e com que desprezo!) numa república das bananas mais conhecida por “suas dançarinas que por seus juristas”. Pois a verdade, nesse que nunca deveria ter se tornado o “caso Battisti”, é a seguinte: não importam as pessoas, nesse tipo de assunto; não importa que tenham uma cara boa, uma boa mídia, uma boa reputação e que nos inspirem, ou não, simpatia; princípios só são princípios quando não sofrem nenhuma exceção. (tradução: Dorothée de Bruchard) * Filósofo e escritor francês, é autor de O Século de Sartre.

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