quinta-feira, 29 de julho de 2010

América Latina: A Revolução de maio de 1810

1. O Vice-Reinado do Prata: a luta pela hegemonia
 
As relações de subordinação com o capital mercantil e comercial europeu, primeiro espanhol e a seguir inglês, determinaram fortemente a história e a conformação das nações independentes que surgiram na bacia do rio da Prata. O próprio vice-reinado do rio da Prata fora fundado, em 1776, para facilitar a administração e sobretudo a percepção das rendas e dos impostos devidos à metrópole ibérica, nos imensos territórios das atuais Argentina, Uruguai, Paraguai e Bolívia.
 
Em inícios do século 19, quando da crise do regime colonial, não havia na América Hispânica base material para uma revolução nacional unitária. Nesse escolho naufragaram os sonhos americanistas de Simon Bolívar (1783-1830) e de José de San Martin (1778-1850). O império colonial espanhol foi estraçalhado pelas tendências centrífugas das suas distintas regiões geoeconômicas, em torno das quais emergiram no geral as repúblicas hispano-americanas.
 
Por necessidade e por interesses, as classes dominantes de algumas regiões da colônia hispano-americana esforçaram-se para unificar em seus proveitos importantes regiões periféricas. Esse foi o caso das oligarquias pastoril e, principalmente, comercial de Buenos Aires, que se desdobraram para manter a unidade territorial e política do antigo vice-reinado do Prata, e com ela os privilégios da cidade-porto, agora sob a direção, autoridade e proveito das classes dominantes crioulas locais.
 
Litoral & Interior
 
Em 1810, quando do movimento pela independência, os couros eram a principal exportação do vice-reinado do rio da Prata, expedidos através do porto de Buenos Aires e, secundariamente, de Montevidéu. Eles eram extraídos na Banda Oriental e no outro lado do Prata nas províncias de Buenos Aires e do litoral. As províncias do interior possuíam produção doméstica, artesanal e pequeno-manufatureira relativamente protegida pela dura imposição alfandegária ibérica. Era importante o fabrico de tecidos do Norte; de solas em Salta; de barcos em Corrientes; de aguardente em Cuyo; de vinho em Mendonza; de carretas no Sul. Boa parte dessa produção chegava a Buenos Aires para ser consumida e distribuída.
 
Durante o período colonial, a oligarquia comercial de Buenos Aires fora dominada por espanhóis natos, articulados com o capital mercantil metropolitano. Ela se enriquecera intermediando o export-import do vice-reinado, sobre o qual possuía direitos monopólicos, compartilhados com o porto de Montevidéu. Na luta pela defesa e extensão do exclusivismo portuário, a oligarquia comercial crioula de Buenos Aires defendeu ferreamente o livre-câmbio. Ao contrário, proprietários e plebeus do interior eram comumente protecionistas. Eles defendiam a rústica produção artesanal e pequeno-manufatureira das importações, melhores e mais baratas. A expansão do comércio dos couros e das carnes golpeava as formas tradicionais gauchas de vida.
 
Ao romper a dependência às autoridades metropolitanas e inaugurar o livre comércio, a Revolução de Maio de 1810 assentou poderoso golpe na frágil articulação entre as províncias de Buenos Aires, do litoral e do interior vigente no período colonial. A Inglaterra locupletou-se fortemente com a independência da região, pois passou a servir-se do grande porto como ponta de lança para a literal invasão do Prata por suas mercadorias. E isso sem necessitar impor o domínio territorial tentado sem sucesso nos anos anteriores. Mais tarde, a França se apoiaria no porto de Montevidéu para ensaiar igual penetração-controle comercial da região. Em José Hernandez y la Guerra del Paraguay, de 1954, o historiador marxista argentino Enrique Rivera lembrava: "La separación de España [...] cortó la corriente nacional en la que se operaba este comercio, determinando que su lugar fuese ocupado, principalmente, por Inglaterra, cuya industria, mucho más adelantada, exigía la apertura de todas las zonas precapitalistas para sus artículos y para proveerse de materias primas."
 
Unitários e Federalistas
 
Em poucos anos, a produção artesanal e pequeno-manufatureira da província de Buenos Aires estava arrasada, impedindo que os segmentos pequeno-burgueses e plebeus se constituíssem como força política efetiva minimamente autônoma. O domínio comercial pleno do Interior seria mais demorado e mais conflituoso. Lembra igualmente Enrique Rivera: "El comercio libre, implantado por el gobierno de Buenos Aires, provocó la desaparición, en corto número de años, de las industrias del interior; las necesidades de la lucha contra los realistas, obligaron a las provincias a sacrificios cuantiosos de sus bienes, así como a distraer brazos de las ocupaciones productivas, con destino a los ejércitos revolucionarios [...]."
 
Comprando em Buenos Aires os produtos platinos exportáveis, com enorme destaque para os couros, e enviando suas mercadorias para o interior, os comerciantes ingleses cortaram os laços entre o centro exportador litorâneo e a produção artesanal e pequeno-manufatureira local e regional. As províncias do interior foram lançadas na estagnação e na regressão, enquanto Buenos Aires e suas classes proprietárias prosperavam. A cidade crescia com uma verdadeira excrescência, de costas voltadas para as regiões do interior. Por décadas, o controle do porto de Buenos Aires e de suas rendas aduaneiras constituiu o centro das tensões regionais. As rendas portuárias eram a quase única garantia real para a emissão de moeda; para a obtenção de empréstimos; para a organização do aparato estatal etc.
 
Por longos anos, o confronto político platino organizou-se fortemente em torno da maior ou menor liberalização do comércio e, sobretudo, do controle das políticas e das rendas alfandegárias do porto de Buenos Aires. As últimas eram tidas pelos unitários como propriedade exclusiva da oligarquia comercial e pastoril portenha e bonaerense. Por sua vez, os federalistas defendiam sua distribuição entre as províncias, pois eram produzidas por todas elas. Quando da Revolução de Maio, em 1810, essa contradição expressou-se no projeto das classes proprietárias portenhas e bonaerenses de emancipar o vice-reinado da Espanha e submetê-lo a Buenos Aires, se possível como nação unitária
 
2.  Fernando 7º e o fim do Império Americano
 
Em 1810, e ainda durante anos, os revolucionários de Buenos Aires sequer proclamaram o rompimento com Fernando 7º, prisioneiro de Napoleão. Preocuparam-se prioritariamente em apoderar-se das rédeas do poder regional, deslocando a burocracia e os comerciantes espanhóis. Mesmo após o rompimento com Espanha, a Revolução de Maio não modificou essencialmente o regime social e produtivo, mantendo a ordem econômico-social dos tempos coloniais. O único segmento social imediatamente extinto foi a burocracia ibérica, defenestrada junto com o vice-rei Baltazar Hidalgo de Cisneros (1755-1829). A Revolução de Maio constituiu fenômeno sobretudo político. Os revolucionários portenhos lutaram principalmente para manter o monopólio comercial de Buenos Aires sobre o Prata e as relações sociais de produção então vigentes.
 
Nomeado pela Junta de Sevilha, em junho de 1809, Cisneros concedera em inícios de novembro a liberdade comercial ao porto de Buenos Aires, para a tristeza dos comerciantes espanhóis e o gáudio dos mercadores crioulos, dos exportadores de couros e especialmente dos comerciantes ingleses. Em de 17 de maio, com a chegada de navio inglês, o vice-rei soube da queda da Junta de Sevilha e do domínio francês sobre a quase totalidade da Espanha. Quando a notícia vazou, lançou proclamação sobre a consulta aos homens bons do vice-reinado, no respeito à orientação a seguir, para anteceder-se a mote autonomista. Na ocasião, o vice-rei não foi informado da conformação de governo espanhol na península.
 
Em 18 de março de 1808, no contexto de profunda crise nacional ibérica, nascida em boa parte da derrota naval espanhola em Trafalgar, em 21 de outubro de 1805, o rei espanhol Carlos 4º abdicara em favor do primogênito Fernando, pressionado por sublevação popular instigada pelo príncipe herdeiro, no dia anterior (motim de Aranjuez). Carlos 4º ensaiara ao subir ao trono tímido movimento reformista − seu filho Fernando, representante do partido aristocrático e absolutista espanhol, envolvera-se anteriormente em complô contra o pai.
 
Abdicação de Bayonne
 
Fernando 7º não esquentou o trono, após abiscoitá-lo, defenestrando sem piedade o progenitor. Aclamado como soberano pelo esperançoso povo de Madrid, cidade já sob controle militar do aliado francês, foi convidado por Napoleão para encontro na localidade de Bayonne, no sudeste da França, próximo à fronteira espanhola. Sem que Fernando soubesse, o poderoso e perigoso sócio na luta contra os ingleses convocara para a reunião igualmente seu pai, que perdera o trono, havia pouco, para o filho ambicioso. Tratou-se de verdadeira emboscada dinástica.
 
Em 6 de maio de 1808, pressionado pelo Imperador, Fernando devolveu a coroa ao pai, sem saber que o progenitor cedera a Napoleão o que achava que já não possuía, secretamente, no dia anterior. Tudo sob a promessa de forte recompensa econômica. Concluindo a complexa urdidura, o imperador dos franceses terminou com a coroa espanhola em suas mãos. Completando a apropriação dinástica formalmente legal, Napoleão abdicou à coroa espanhola em favor de seu irmão mais velho, em 6 de junho de 1808, coroado a seguir como José I, rei dos espanhóis.
 
Após as chamadas Abdicações de Bayonne, com as rédeas da Espanha nas mãos, Napoleão convocou os notáveis do reino espanhol àquela localidade, para apresentar-lhes projeto de Constituição, promulgada em 8 de julho de 1808. A primeira carta constitucional da Espanha era clerical, estabelecia enormes poderes ao rei e instituía os principais direitos burgueses. Ela procurava aproximar da nova ordem os liberais espanhóis, em forte contradição com o absolutismo real. Também devido a ela, a resistência à ocupação francesa dar-se-ia fortemente sob o signo do liberalismo espanhol.
 
Um reino curto
 
José I jamais conseguiu reinar plenamente sobre uma Espanha sublevada, que abandonou em 1813. Em defesa da independência, impulsionada pela resistência militar semi-espontânea da população das cidades e dos campos, formou-se a Junta Suprema Central (Junta de Sevilha), em 25 de setembro de 1808, formada por representantes das juntas provinciais. Anteriormente, em 11 de agosto, o Conselho de Castela, órgão máximo do reino, inferior em poder apenas ao soberano, declarara nulas as abdicações e confirmara Fernando 7º como rei da Espanha. Sob a forte influência da nobreza e dos grandes proprietários fundiários, a Junta de Sevilha jamais convocou uma constituinte, enquanto José Bonaparte I implementava reformas liberais no país, ainda que em um viés fortemente conservador.
 
A Junta de Sevilha comandou a resistência militar ao invasor, até a fragorosa derrota de Ocaña, em 19 de novembro de 1809, em Toledo, em confronto que antepôs cem mil combatentes. Após a derrota, desprestigiada, a Junta dissolveu-se, dando lugar ao Conselho de Regência da Espanha e das Índias (1810-1814), sediado na ilha de León, na Andaluzia, no pouco que restava de Espanha livre. Cercada pelos franceses e defendida pela marinha inglesa, o novo governo convocou as cortes gerais, dando a Espanha sua primeira Constituição não outorgada, em 1812, em Cádiz, de perfil liberal.
 
Fernando foi guardado em prisão dourada, no castelo de Valençay, no interior da França, durante a guerra de independência espanhola. Acreditando na estrela de Napoleão e sem qualquer confiança na força da resistência do povo espanhol, o rei engambelado manteve correspondência áulica e obsequiosa com o Imperador, requerendo favores e reconhecendo, reiteradas vezes, José Bonaparte como soberano espanhol. Na sua pusilanimidade, expressava o caráter historicamente anacrônico do absolutismo ibérico, em uma Europa estremecida pelos ventos liberais e revolucionários inaugurados pela Revolução Francesa.
 
Bon vivant e servil
 
Apesar de seu desbragado servilismo, devido à sua situação de prisioneiro, e à inexistência de fortes classes burguesas e plebéias modernas na Espanha, Fernando 7º manteve o apoio da população, que teimava em ver nele apoio para a defesa da independência e para o renascimento social do reino e da nacionalidade. Com as vitórias dos exércitos ingleses em Portugal e na Espanha e a derrota francesa nas estepes da Rússia, Fernando 7º acordou com Napoleão o retorno ao status quo anterior, em troca da neutralidade espanhola na guerra continental, em dezembro de 1813.
 
A tibieza de Fernando 7º em enfrentar o poder napoleônico em eclipse registrava a vontade de combater seu verdadeiro inimigo − as forças liberais e populares espanholas.
 
Em maio de 1814, apoiado por tropas militares realistas, Fernando pôs fim à Constituição de Cádiz, de 1812, restabeleceu o antigo regime, perseguiu os liberais patriotas que haviam lutado pela independência espanhola e os afrancesados, que tinham colaborado com os invasores. Ao retornar a Madrid, foi novamente aclamado pela população, sempre esperançosa na estrela do soberano venal.
 
Em 1820, sublevação das tropas destinadas a reconquistar as colônias americanas rebeladas lançou o processo que levaria a três anos de regime constitucional, seguidos de década de repressão antiliberal. Enquanto confrontavam-se na Espanha os grandes proprietários monarquistas e absolutistas e os liberais, burgueses e populares, dissolvia-se literalmente o império hispano-americano. Nas Américas, as colônias ibéricas ficariam reduzidas ao domínio das ilhas de Cuba e de Porto Rico, devido ao temor das classes crioulas regionais de comprometer, com a independência, a ordem escravista reinante naqueles territórios. Fernando 7º morreu em 1833.
 
Mário Maestri é historiador e professor do programa de Pós-Graduação em História da UPF.
E-mail: maestri@via-rs.net

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