A História como produto inacabado
Fonte: Copyright 2009 Jornal de Angola
Começo por agradecer a forma elegante, cordial e académica como o historiador João Pedro Lourenço apresentou o seu artigo “Os bantu entraram cedo para a História”, editado no Jornal de Angola de 3 de Agosto de 2010, na sequência de um texto meu, publicado, no mesmo diário, em 20 de Julho de 2010 e intitulado “A longa noite de um povo agrilhoado”. Fora do contexto “escravatura e tráfico de escravos”, que cobre a quase totalidade do meu artigo, a questão em jogo circunscreve-se à parte introdutória, onde afirmo que “os bantu, grupo civilizacional maioritário em Angola, entraram tarde na história da humanidade”.
Entre as razões de fundo e circunstância, considero pertinente e interessante o artigo do historiador João Pedro Lourenço, já que é necessário abrir mais espaços de diálogo para as questões de carácter gnoseológico e epistemológico na comunidade académica angolana, a par do crescimento de instituições públicas e privadas do ensino superior. Para além das revistas mais divulgadas, Angolana de Sociologia, editada, salvo erro, semestralmente, pela Sociedade Angolana de Sociologia (SASO) e da Lucere do CEIC da Universidade Católica de Angola, tem, obviamente, de haver mais publicações especializadas, onde os assuntos de carácter científico possam ser alvo de tratamento académico.
Atendendo à linha editorial do Jornal de Angola e apesar de, por vezes, tolerado, os textos a publicar neste periódico, em princípio, não devem apresentar citações e referências bibliográficas. Contudo, a parte do meu artigo, onde se situa o seguinte trecho: “É certo que, ao contrário de todos os outros povos negro-africanos, os banto entraram tarde na história. As realizações mais antigas de que temos conhecimento são: o Reino do Congo no século XIV; Sofala entre os séculos IX e XIII, numa altura em que o comércio árabe já estava muito desenvolvido” deveria estar, pelo menos, entre aspas. Esta parte corresponde a uma citação do livro do P. Raul Ruiz de Asúa Altuna, Cultura Tradicional Banto, que já foi devidamente referenciada em outras publicações de minha autoria, mas não, propriamente, neste meu artigo do Jornal de Angola. Assumo inteiramente esse meu descuido académico e, obviamente, penitencio-me por ele.
Notas prévias
Um dos grandes problemas contemporâneos, frequentemente reconhecido pelo sociólogo Hermano Carmo, está relacionado com a redução drástica do ciclo de vida do conhecimento. Vivemos um período de rápidas mutações onde, hoje, o saber se degrada mais rapidamente que no passado. A selecção, análise e interpretação das fontes acarretam um elevado grau de subjectividade às ciências sociais, o que faz com que não se rejam por determinismos rígidos, mas, tendenciais. A História não é uma ciência exacta e, como tal, deve ser vista com produto permanentemente inacabado, sobretudo, quando a distância dos factos constitui o maior obstáculo à interpretação de uma qualquer realidade objectiva, interpretação essa que nem sempre surge desprovida de influências de carácter ideológico e que, por vezes, nos pode ou não conduzir a falsos juízos de valor.
Não há conhecimento, que o livro do P. Raul Ruiz de Asúa Altuna, que tem por título “Cultura Tradicional Banto”, editado em Luanda, em 1985, pelo Secretariado Arquidiocesano de Pastoral, tenha sido alguma vez sujeito a uma recensão crítica, que desaconselhasse o seu uso para fins académicos. Que me lembre e não particularmente relacionado com este bom trabalho do P. Ruiz Altuna, apenas Bogumil Jewsiewicki, na contracapa do livro The Invention of África – Gnosis, Philosophy and the order of knowlwdge [A Invenção de África – Gnoses, Filosofia e a ordem do conhecimento] do filósofo congolês Valentin Mundimbe, afirmou o seguinte: “os antropólogos ocidentais e missionários criaram distorções, não só em relação aos que vieram de fora, mas também em relação aos próprios africanos, ao procurar compreendê-los”. Mundimbe, por seu turno, “nega-se a compartilhar das opiniões clássicas sobre a História e a Antropologia africanas já que, segundo o mesmo, os seus resultados podem ou não reflectir a realidade objectiva africana”. [MUNDIMBE, V.Y. (1988), The Invention of Africa – Gnosis, Philosophy, and the Order of Knowledge, Indiana University Press – Blooming and Indianapolis; James Currey, London, Introduction, p.ix].
Contudo, é o próprio P. Ruiz Altuna, que, no prefácio do seu livro (pág. 11), afirma o seguinte: “Citamos frequentemente africanistas europeus que se aproximam deste continente com amor e interesse, e recorremos constantemente a autores negro-africanos. Já é tempo de os conhecer e sobretudo de os ouvir”. Entre outros, são citados Théofile Obenga, Joseph Ki-Zerbo e, sobretudo, Cheik Anta Diop, que o autor da réplica afirma que “liderou activamente um movimento de ruptura epistemológica em relação à História de África, cuja orientação principal era combater as teorias pseudo-ciêntificas que consideravam o nosso continente ahistórico, imobilista (estagnado) e ausente no processo de construção da civilização universal”.
Cheik Anta Diop é frequentemente citado pelo P. Raul Altuna neste seu livro. Porém, a tese de Cheik Anta Diop, director durante largos anos do Institut Fundamental d’Afrique Noire, em Dakar, é considerada polémica em certos meios académicos. O seu livro “Nations nègres et cultures: de l’Antiquité negro-égiptienne aux problemes culturels de l’Afrique d’aujourd’hui” (1955), de que também nos fala o historiador João Pedro Lourenço, tem por objectivo provar, que a civilização do Antigo Egipto foi protagonizada por negros, é, segundo o Prof. Manuel Maria Carrilho, fruto de uma tese rejeitada na Sorbonne [CARRILHO, Maria (1975); Sociologia da negritude, Edições 70, Lisboa, p.118]. Esta e outras teses foram consideradas como não estando devidamente fundamentadas, apresentando preocupações mais ideológicas do que académicas. Para além do enaltecimento do valor do homem negro e da sua cultura, esta era entendida como uma unidade, posição anteriormente defendida por etnólogos europeus, como os alemães Leo Frobenius e Janheinz Jahn, mas que, hoje, segundo o sociólogo angolano José Carlos Venâncio, já é, também, posta em causa [VENÂNCIO, José Carlos (2000), O facto Africano. Elementos para uma sociologia da África, Vega, Lisboa, p.72]. No entanto, tal como o P. Raul Altuna, eu próprio continuo a citar frequentemente Cheik Anta Diop nos meus trabalhos, por considerá-lo, antes de mais, um clássico da historiografia africana.
Inferências e associações
Pelas razões apresentadas, não me parece que as análises – consideradas “eivadas de erros”, pelo autor da réplica –, que levaram o P. Raul Altuna a afirmar que “(…) ao contrário de outros povos negro-africanos, os banto entraram tarde na História” (e que eu transcrevi, integralmente, no meu artigo), justifique quaisquer comparações que nos levem a inferir uma aproximação ideológica, entre outros, com: os seguidores da teoria evolucionista de Darwin; o “Essai sur l’inégalité des races humaines” [Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas] de Arthur de Gobineau; o historiador Oliveira Martins, que, ao desvalorizar o esforço missionário em África, afirmou “porque não há-de ensinar-se a Bíblia ao gorila ou ao orangotango, que nem por não terem falla, deixam de ter ouvidos, e hão de entender, quasi tanto como entende o preto, a methaphisica da encarnação do Verbo e o dogma da Trindade” [MARTINS, Oliveira (1978), O Brasil e as Colónias Portuguesas, Guimarães e Cª Editores, opp.254-255].
A bem da verdade, o autor da réplica não estabelece uma correlação directa entre o Darwinismo social, os argumentos dos defensores do apartheid e a citação do livro do P. Raul Altuna. Porém, no seu artigo, ao levantar, intencionalmente, estes aspectos, torna implícita essa associação, que me parece despropositada e, em meu entender, quase a roçar a ofensa, se levarmos em conta a introdução feita pelo próprio autor do livro: “a obra que o leitor tem em mãos é fruto do meu encontro, que vai para 26 anos, com o mundo banto, sempre com a preocupação de o conhecer. E, embora a identificação cultural resulte muito difícil para um europeu, dá-se contudo uma aproximação que brota do carinho, do amor e do desejo de servir os povos banto, em especial os angolanos” (pág. 11).
A apresentação do livro do P. Raul Altura (pág. 10) foi feita, a partir de Roma, pelo arcebispo de Luanda, Eduardo André Muaca, que frisou o seguinte: “Temos a honra e a satisfação de apresentar aos leitores a obra “CULTURA TRADICIONAL BANTO” do missionário P. Raul Ruiz de Asúa Altuna, das Missões Diocesanas Vascongadas (Espanha). Este livro não foi preparado sobre o joelho. É fruto de longos anos de investigação, estudo e reflexão sobre um tema cuja importância e actualidade ninguém põe em dúvida. Consequentemente, sublinhar a importância e actualidade deste livro é um dever que gostosamente cumprimos (…). O livro terá certamente várias categorias de leitores. Dum lado, os estudiosos dos problemas africanos e da alma banto, que terão nele um precioso instrumento de trabalho e de ajuda nas suas investigações. Doutro, os hipercríticos, que sublinharão um {ou} outro ponto discutível e as deficiências, inevitáveis em obras deste fôlego”.
Resposta às interrogações
Em momento algum, no livro do P. Raul Altuna, se pode inferir que a civilização bantu seja recente, já que o mesmo afirma que “há 5.000 anos, os banto tenham invadido a Somália e, um milénio depois, tenham sido expulsos por outro grupo banto”. Refere, também, que a explosão demográfica “começou há 2.000 ou 2.500 anos e em seguida, [os bantu] se dispersaram empreendendo, assim, a maior migração realizada em África” (pág.13). O uso de utensílios de ferro foi, à época, a maior realização dos povos bantu, que lhes possibilitou atravessar a floresta equatoriana e o P. Raul Altuna, citando Ki-Zerbo refere que “nada impede que a invenção do uso do ferro seja de origem autóctone, pois os vestígios mais antigos foram radicalmente destruídos pela aridez dos solos” (pág.14). Logo, nada nos leva a inferir que as grandes realizações dos bantu sejam obras do exterior.
Quanto ao facto dos europeus chegarem ao extremo sul do continente africano antes dos bantu, o P. Raul Altuna refere, claramente, o seguinte: “De uma maneira geral, admite-se a ideia de que os bantos chegaram ao sul de África no século XVI ou XVII. A opinião geral é que, à volta de 1500, os banto eram tão estranhos nas terras afastadas do sul de África como os próprios europeus. (H. Stekil). No entanto, parece que a partir do século X, os banto em vagas sucessivas se foram aproximando do Sudeste. Os thongas devem ter sido os primeiros a chegar. No século XV devem ter chegado os ngonis, cujo grupo mais importante foi o dos xosos. Depois foram chegando os bexuanas, pondos, swasi, basutos. Os negro-africanos afirmam que o sul de África não estava abandonado, não era uma região vazia e portanto, disponível para ser ocupada pelo branco” (pág. 16). Tal demonstra que os bantu não “estiveram estáticos no seu movimento para sul” e que a sua formação e as três fases de expansão deram origem a uma enorme variedade de cruzamentos.
Um trabalho de investigação de Cláudia Lima refere que a trajectória dos bantu não foi feita por exércitos, embora tivessem, algumas vezes, de valer-se do uso da força. “No início, podem ter partido em minoria, mas o volume de carne que a colectividade produzia e a eficácia de seus caçadores ia agregando os povos vizinhos, os quais convertidos engrossavam os contingentes bantos ao longo do caminho”. Algumas vezes, territórios que lhes pareciam vazios, já eram ocupados por pequenos grupos caçadores e colectores, khoikhoi (ou hotentontes), san e pigmeus, que predominavam nas savanas e na maior parte das florestas. Mesmo assim, rarefeita ou não a população, o grupo bantu ocupava esses espaços. “Um grupo bantu chegava com apenas algumas famílias, ou com toda uma linhagem. Limpava o terreno, cortava as árvores para fazer casas, armando as paredes como uma gaiola de varas e preenchendo os vazios com barro socado, compondo o tecto de sapé. Quando o solo começava a mostrar menos fertilidade ou a caça se tornava mais difícil nas redondezas, o grupo seguia adiante”. Ainda de acordo com Cláudia Lima, os bantu, aparentemente, não estariam interessados em colonizar terras onde a agricultura não assegurasse a sua subsistência, o que era corrente, face a um índice de pluviosidade anual inadequado ou insuficiente, como é o caso das regiões áridas do extremo sudoeste do continente africano, que culmina no deserto da Namíbia e no deserto vizinho do Calaári, onde, hoje, os san ainda caçam, vivem e recolhem.
Mas, o P. Raul Altuna, informa-nos também que os holandeses chegaram ao Cabo da Boa Esperança no século XVII e, em 1621, fundaram a Companhia Holandesa das Índias Orientais. Em Abril de 1652, Jan van Riebeck fundou a cidade do Cabo. “Os holandeses aproveitaram os bosquimanos e hotentontes para pastores, casaram com as suas mulheres e originaram os mistos ‘bastardos, grikuas’.” (pág. 16). Segundo Gerald Bender, apesar da influência protestante que terá influenciado a descriminação de raças, o apartheid, propriamente dito, como acto de segregação de jure, só surge na África do Sul em 1948, quando a proporção de mestiços se aproximou da proporção de brancos. [BENDER, Gerald J. (1976) Angola sob Domínio Português, Sá da Costa, Lisboa, p.80]. Também os negros da África do Sul foram às vezes chamados oficialmente “bantos” pelo regime do apartheid, o que é um erro e que pode estar na origem do aproveitamento político dos seguidores daquele regime de “os europeus terem chegado ao extremo sul do continente africano antes dos bantu”. Porém, “(…) o sul de África não estava abandonado, não era uma região vazia e portanto, disponível para ser ocupado pelo branco”, refere ainda o P. Raul Altuna.
D. Fage, um investigador citado por Bernard Clist et Raymond Lanfranchi, no texto “Arquiologie et histoire ancienne” [Arqueologia e história antiga], uma edição de vários autores do CICIBA (Centro de Investigação de Civilizações Bantu), organizada por Théofile Obenga e Simão Souindoula em “Racines Bantu; Bantu Roots” [Raizes Bantu, Rotas Bantu] – também afirma que “muito embora existam bons vestígios arqueológicos de que os agricultores da Idade do Ferro haviam atravessado o Limpopo e se começaram a instalar no Transval, Suazilândia e Natal a partir do séc. IV, o seu subsequente avanço na África meridional foi relativamente lento. O gado passou a ter uma importância cada vez maior na sua economia e sociedade e a colonização centrou-se nas planícies costeiras melhor irrigadas antes de avançar para o interior. A sedentarização nas terras altas de pastagem da savana só se terá iniciado cerca de 1300, e no litoral os Bantos podem só ter alcançado o rio Kei próximo do séc. XVI (altura em que dispomos de fortes indícios da sua presença através das narrativas dos marinheiros portugueses naufragados).[In, http://Afrologia.Blogspot.com/2008/03/O-Nordeste-e-frica-banto-04.html].
De todas as formas, com base no livro do P. Raul Altuna e este texto de D. Fage, se reconfirma que, quando Vasco da Gama e Bartolomeu Dias dobraram o Cabo da Boa Esperança, em 1498, portanto, em finais do século XV, nem bantu, nem boers lá estariam, pois, estes, não lá chegaram, antes do século XVI.
A relatividade do tempo
Desde que a ciência justificou a separação de África da América do Sul há 150 milhões de anos atrás e encontrou em África microrganismos fósseis de 3.200 milhões de anos, que atestam uma das primeiras formas de vida existentes na Terra, o homem tornou-se, de imediato, um ser eminente histórico e a forma como as civilizações passaram a ser consideradas como tendo entrado cedo ou tarde na mesma, deverá ser visto de forma relativa e contextual. O ponto fulcral da réplica se relaciona com o facto de “os banto terem entrado tarde na história” e que, de acordo com o P. Raul Altuna, está relacionado com épocas de realizações mais relevantes, associadas a um paradigma de organização político-social mais complexo. É, para além da metalurgia e da forma como foi atravessada a floresta equatoriana, apenas um critério.
Por exemplo, a primeira grande civilização africana começou no vale do Nilo por volta de 5000 a.C.. O reino do Egipto desenvolveu-se e influiu nas sociedades mediterrâneas e africanas por milhares de anos. O Antigo Império Gana, um outro exemplo, teve seu apogeu entre os anos 700 e 1200 d.C. Para o P. Raul Altuna, o reino do Sofala, entre os séculos IX e XIII, foi, a primeira grande realização dos bantu no hemisfério sul, quando os árabes já percorriam a costa leste de África, a partir do século X. [http://www.attambur.com/Recolhas/africa.htm]. É apenas um facto, que, obrigatoriamente, não tem de implicar em outros juízos de valor.
Em todo este processo de investigação, análise e de interpretação das fontes só as estórias estão acabadas. A História, essa, é um processo inacabado e o conhecimento que vamos tendo dela, leva-nos a ter de ser humildes, face ao muito que teremos ainda de aprender, caso estivermos motivados para tal.
*Ph. D em Ciências da Educação e Mestre em Relações Interculturais
Entre as razões de fundo e circunstância, considero pertinente e interessante o artigo do historiador João Pedro Lourenço, já que é necessário abrir mais espaços de diálogo para as questões de carácter gnoseológico e epistemológico na comunidade académica angolana, a par do crescimento de instituições públicas e privadas do ensino superior. Para além das revistas mais divulgadas, Angolana de Sociologia, editada, salvo erro, semestralmente, pela Sociedade Angolana de Sociologia (SASO) e da Lucere do CEIC da Universidade Católica de Angola, tem, obviamente, de haver mais publicações especializadas, onde os assuntos de carácter científico possam ser alvo de tratamento académico.
Atendendo à linha editorial do Jornal de Angola e apesar de, por vezes, tolerado, os textos a publicar neste periódico, em princípio, não devem apresentar citações e referências bibliográficas. Contudo, a parte do meu artigo, onde se situa o seguinte trecho: “É certo que, ao contrário de todos os outros povos negro-africanos, os banto entraram tarde na história. As realizações mais antigas de que temos conhecimento são: o Reino do Congo no século XIV; Sofala entre os séculos IX e XIII, numa altura em que o comércio árabe já estava muito desenvolvido” deveria estar, pelo menos, entre aspas. Esta parte corresponde a uma citação do livro do P. Raul Ruiz de Asúa Altuna, Cultura Tradicional Banto, que já foi devidamente referenciada em outras publicações de minha autoria, mas não, propriamente, neste meu artigo do Jornal de Angola. Assumo inteiramente esse meu descuido académico e, obviamente, penitencio-me por ele.
Notas prévias
Um dos grandes problemas contemporâneos, frequentemente reconhecido pelo sociólogo Hermano Carmo, está relacionado com a redução drástica do ciclo de vida do conhecimento. Vivemos um período de rápidas mutações onde, hoje, o saber se degrada mais rapidamente que no passado. A selecção, análise e interpretação das fontes acarretam um elevado grau de subjectividade às ciências sociais, o que faz com que não se rejam por determinismos rígidos, mas, tendenciais. A História não é uma ciência exacta e, como tal, deve ser vista com produto permanentemente inacabado, sobretudo, quando a distância dos factos constitui o maior obstáculo à interpretação de uma qualquer realidade objectiva, interpretação essa que nem sempre surge desprovida de influências de carácter ideológico e que, por vezes, nos pode ou não conduzir a falsos juízos de valor.
Não há conhecimento, que o livro do P. Raul Ruiz de Asúa Altuna, que tem por título “Cultura Tradicional Banto”, editado em Luanda, em 1985, pelo Secretariado Arquidiocesano de Pastoral, tenha sido alguma vez sujeito a uma recensão crítica, que desaconselhasse o seu uso para fins académicos. Que me lembre e não particularmente relacionado com este bom trabalho do P. Ruiz Altuna, apenas Bogumil Jewsiewicki, na contracapa do livro The Invention of África – Gnosis, Philosophy and the order of knowlwdge [A Invenção de África – Gnoses, Filosofia e a ordem do conhecimento] do filósofo congolês Valentin Mundimbe, afirmou o seguinte: “os antropólogos ocidentais e missionários criaram distorções, não só em relação aos que vieram de fora, mas também em relação aos próprios africanos, ao procurar compreendê-los”. Mundimbe, por seu turno, “nega-se a compartilhar das opiniões clássicas sobre a História e a Antropologia africanas já que, segundo o mesmo, os seus resultados podem ou não reflectir a realidade objectiva africana”. [MUNDIMBE, V.Y. (1988), The Invention of Africa – Gnosis, Philosophy, and the Order of Knowledge, Indiana University Press – Blooming and Indianapolis; James Currey, London, Introduction, p.ix].
Contudo, é o próprio P. Ruiz Altuna, que, no prefácio do seu livro (pág. 11), afirma o seguinte: “Citamos frequentemente africanistas europeus que se aproximam deste continente com amor e interesse, e recorremos constantemente a autores negro-africanos. Já é tempo de os conhecer e sobretudo de os ouvir”. Entre outros, são citados Théofile Obenga, Joseph Ki-Zerbo e, sobretudo, Cheik Anta Diop, que o autor da réplica afirma que “liderou activamente um movimento de ruptura epistemológica em relação à História de África, cuja orientação principal era combater as teorias pseudo-ciêntificas que consideravam o nosso continente ahistórico, imobilista (estagnado) e ausente no processo de construção da civilização universal”.
Cheik Anta Diop é frequentemente citado pelo P. Raul Altuna neste seu livro. Porém, a tese de Cheik Anta Diop, director durante largos anos do Institut Fundamental d’Afrique Noire, em Dakar, é considerada polémica em certos meios académicos. O seu livro “Nations nègres et cultures: de l’Antiquité negro-égiptienne aux problemes culturels de l’Afrique d’aujourd’hui” (1955), de que também nos fala o historiador João Pedro Lourenço, tem por objectivo provar, que a civilização do Antigo Egipto foi protagonizada por negros, é, segundo o Prof. Manuel Maria Carrilho, fruto de uma tese rejeitada na Sorbonne [CARRILHO, Maria (1975); Sociologia da negritude, Edições 70, Lisboa, p.118]. Esta e outras teses foram consideradas como não estando devidamente fundamentadas, apresentando preocupações mais ideológicas do que académicas. Para além do enaltecimento do valor do homem negro e da sua cultura, esta era entendida como uma unidade, posição anteriormente defendida por etnólogos europeus, como os alemães Leo Frobenius e Janheinz Jahn, mas que, hoje, segundo o sociólogo angolano José Carlos Venâncio, já é, também, posta em causa [VENÂNCIO, José Carlos (2000), O facto Africano. Elementos para uma sociologia da África, Vega, Lisboa, p.72]. No entanto, tal como o P. Raul Altuna, eu próprio continuo a citar frequentemente Cheik Anta Diop nos meus trabalhos, por considerá-lo, antes de mais, um clássico da historiografia africana.
Inferências e associações
Pelas razões apresentadas, não me parece que as análises – consideradas “eivadas de erros”, pelo autor da réplica –, que levaram o P. Raul Altuna a afirmar que “(…) ao contrário de outros povos negro-africanos, os banto entraram tarde na História” (e que eu transcrevi, integralmente, no meu artigo), justifique quaisquer comparações que nos levem a inferir uma aproximação ideológica, entre outros, com: os seguidores da teoria evolucionista de Darwin; o “Essai sur l’inégalité des races humaines” [Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas] de Arthur de Gobineau; o historiador Oliveira Martins, que, ao desvalorizar o esforço missionário em África, afirmou “porque não há-de ensinar-se a Bíblia ao gorila ou ao orangotango, que nem por não terem falla, deixam de ter ouvidos, e hão de entender, quasi tanto como entende o preto, a methaphisica da encarnação do Verbo e o dogma da Trindade” [MARTINS, Oliveira (1978), O Brasil e as Colónias Portuguesas, Guimarães e Cª Editores, opp.254-255].
A bem da verdade, o autor da réplica não estabelece uma correlação directa entre o Darwinismo social, os argumentos dos defensores do apartheid e a citação do livro do P. Raul Altuna. Porém, no seu artigo, ao levantar, intencionalmente, estes aspectos, torna implícita essa associação, que me parece despropositada e, em meu entender, quase a roçar a ofensa, se levarmos em conta a introdução feita pelo próprio autor do livro: “a obra que o leitor tem em mãos é fruto do meu encontro, que vai para 26 anos, com o mundo banto, sempre com a preocupação de o conhecer. E, embora a identificação cultural resulte muito difícil para um europeu, dá-se contudo uma aproximação que brota do carinho, do amor e do desejo de servir os povos banto, em especial os angolanos” (pág. 11).
A apresentação do livro do P. Raul Altura (pág. 10) foi feita, a partir de Roma, pelo arcebispo de Luanda, Eduardo André Muaca, que frisou o seguinte: “Temos a honra e a satisfação de apresentar aos leitores a obra “CULTURA TRADICIONAL BANTO” do missionário P. Raul Ruiz de Asúa Altuna, das Missões Diocesanas Vascongadas (Espanha). Este livro não foi preparado sobre o joelho. É fruto de longos anos de investigação, estudo e reflexão sobre um tema cuja importância e actualidade ninguém põe em dúvida. Consequentemente, sublinhar a importância e actualidade deste livro é um dever que gostosamente cumprimos (…). O livro terá certamente várias categorias de leitores. Dum lado, os estudiosos dos problemas africanos e da alma banto, que terão nele um precioso instrumento de trabalho e de ajuda nas suas investigações. Doutro, os hipercríticos, que sublinharão um {ou} outro ponto discutível e as deficiências, inevitáveis em obras deste fôlego”.
Resposta às interrogações
Em momento algum, no livro do P. Raul Altuna, se pode inferir que a civilização bantu seja recente, já que o mesmo afirma que “há 5.000 anos, os banto tenham invadido a Somália e, um milénio depois, tenham sido expulsos por outro grupo banto”. Refere, também, que a explosão demográfica “começou há 2.000 ou 2.500 anos e em seguida, [os bantu] se dispersaram empreendendo, assim, a maior migração realizada em África” (pág.13). O uso de utensílios de ferro foi, à época, a maior realização dos povos bantu, que lhes possibilitou atravessar a floresta equatoriana e o P. Raul Altuna, citando Ki-Zerbo refere que “nada impede que a invenção do uso do ferro seja de origem autóctone, pois os vestígios mais antigos foram radicalmente destruídos pela aridez dos solos” (pág.14). Logo, nada nos leva a inferir que as grandes realizações dos bantu sejam obras do exterior.
Quanto ao facto dos europeus chegarem ao extremo sul do continente africano antes dos bantu, o P. Raul Altuna refere, claramente, o seguinte: “De uma maneira geral, admite-se a ideia de que os bantos chegaram ao sul de África no século XVI ou XVII. A opinião geral é que, à volta de 1500, os banto eram tão estranhos nas terras afastadas do sul de África como os próprios europeus. (H. Stekil). No entanto, parece que a partir do século X, os banto em vagas sucessivas se foram aproximando do Sudeste. Os thongas devem ter sido os primeiros a chegar. No século XV devem ter chegado os ngonis, cujo grupo mais importante foi o dos xosos. Depois foram chegando os bexuanas, pondos, swasi, basutos. Os negro-africanos afirmam que o sul de África não estava abandonado, não era uma região vazia e portanto, disponível para ser ocupada pelo branco” (pág. 16). Tal demonstra que os bantu não “estiveram estáticos no seu movimento para sul” e que a sua formação e as três fases de expansão deram origem a uma enorme variedade de cruzamentos.
Um trabalho de investigação de Cláudia Lima refere que a trajectória dos bantu não foi feita por exércitos, embora tivessem, algumas vezes, de valer-se do uso da força. “No início, podem ter partido em minoria, mas o volume de carne que a colectividade produzia e a eficácia de seus caçadores ia agregando os povos vizinhos, os quais convertidos engrossavam os contingentes bantos ao longo do caminho”. Algumas vezes, territórios que lhes pareciam vazios, já eram ocupados por pequenos grupos caçadores e colectores, khoikhoi (ou hotentontes), san e pigmeus, que predominavam nas savanas e na maior parte das florestas. Mesmo assim, rarefeita ou não a população, o grupo bantu ocupava esses espaços. “Um grupo bantu chegava com apenas algumas famílias, ou com toda uma linhagem. Limpava o terreno, cortava as árvores para fazer casas, armando as paredes como uma gaiola de varas e preenchendo os vazios com barro socado, compondo o tecto de sapé. Quando o solo começava a mostrar menos fertilidade ou a caça se tornava mais difícil nas redondezas, o grupo seguia adiante”. Ainda de acordo com Cláudia Lima, os bantu, aparentemente, não estariam interessados em colonizar terras onde a agricultura não assegurasse a sua subsistência, o que era corrente, face a um índice de pluviosidade anual inadequado ou insuficiente, como é o caso das regiões áridas do extremo sudoeste do continente africano, que culmina no deserto da Namíbia e no deserto vizinho do Calaári, onde, hoje, os san ainda caçam, vivem e recolhem.
Mas, o P. Raul Altuna, informa-nos também que os holandeses chegaram ao Cabo da Boa Esperança no século XVII e, em 1621, fundaram a Companhia Holandesa das Índias Orientais. Em Abril de 1652, Jan van Riebeck fundou a cidade do Cabo. “Os holandeses aproveitaram os bosquimanos e hotentontes para pastores, casaram com as suas mulheres e originaram os mistos ‘bastardos, grikuas’.” (pág. 16). Segundo Gerald Bender, apesar da influência protestante que terá influenciado a descriminação de raças, o apartheid, propriamente dito, como acto de segregação de jure, só surge na África do Sul em 1948, quando a proporção de mestiços se aproximou da proporção de brancos. [BENDER, Gerald J. (1976) Angola sob Domínio Português, Sá da Costa, Lisboa, p.80]. Também os negros da África do Sul foram às vezes chamados oficialmente “bantos” pelo regime do apartheid, o que é um erro e que pode estar na origem do aproveitamento político dos seguidores daquele regime de “os europeus terem chegado ao extremo sul do continente africano antes dos bantu”. Porém, “(…) o sul de África não estava abandonado, não era uma região vazia e portanto, disponível para ser ocupado pelo branco”, refere ainda o P. Raul Altuna.
D. Fage, um investigador citado por Bernard Clist et Raymond Lanfranchi, no texto “Arquiologie et histoire ancienne” [Arqueologia e história antiga], uma edição de vários autores do CICIBA (Centro de Investigação de Civilizações Bantu), organizada por Théofile Obenga e Simão Souindoula em “Racines Bantu; Bantu Roots” [Raizes Bantu, Rotas Bantu] – também afirma que “muito embora existam bons vestígios arqueológicos de que os agricultores da Idade do Ferro haviam atravessado o Limpopo e se começaram a instalar no Transval, Suazilândia e Natal a partir do séc. IV, o seu subsequente avanço na África meridional foi relativamente lento. O gado passou a ter uma importância cada vez maior na sua economia e sociedade e a colonização centrou-se nas planícies costeiras melhor irrigadas antes de avançar para o interior. A sedentarização nas terras altas de pastagem da savana só se terá iniciado cerca de 1300, e no litoral os Bantos podem só ter alcançado o rio Kei próximo do séc. XVI (altura em que dispomos de fortes indícios da sua presença através das narrativas dos marinheiros portugueses naufragados).[In, http://Afrologia.Blogspot.com/2008/03/O-Nordeste-e-frica-banto-04.html].
De todas as formas, com base no livro do P. Raul Altuna e este texto de D. Fage, se reconfirma que, quando Vasco da Gama e Bartolomeu Dias dobraram o Cabo da Boa Esperança, em 1498, portanto, em finais do século XV, nem bantu, nem boers lá estariam, pois, estes, não lá chegaram, antes do século XVI.
A relatividade do tempo
Desde que a ciência justificou a separação de África da América do Sul há 150 milhões de anos atrás e encontrou em África microrganismos fósseis de 3.200 milhões de anos, que atestam uma das primeiras formas de vida existentes na Terra, o homem tornou-se, de imediato, um ser eminente histórico e a forma como as civilizações passaram a ser consideradas como tendo entrado cedo ou tarde na mesma, deverá ser visto de forma relativa e contextual. O ponto fulcral da réplica se relaciona com o facto de “os banto terem entrado tarde na história” e que, de acordo com o P. Raul Altuna, está relacionado com épocas de realizações mais relevantes, associadas a um paradigma de organização político-social mais complexo. É, para além da metalurgia e da forma como foi atravessada a floresta equatoriana, apenas um critério.
Por exemplo, a primeira grande civilização africana começou no vale do Nilo por volta de 5000 a.C.. O reino do Egipto desenvolveu-se e influiu nas sociedades mediterrâneas e africanas por milhares de anos. O Antigo Império Gana, um outro exemplo, teve seu apogeu entre os anos 700 e 1200 d.C. Para o P. Raul Altuna, o reino do Sofala, entre os séculos IX e XIII, foi, a primeira grande realização dos bantu no hemisfério sul, quando os árabes já percorriam a costa leste de África, a partir do século X. [http://www.attambur.com/Recolhas/africa.htm]. É apenas um facto, que, obrigatoriamente, não tem de implicar em outros juízos de valor.
Em todo este processo de investigação, análise e de interpretação das fontes só as estórias estão acabadas. A História, essa, é um processo inacabado e o conhecimento que vamos tendo dela, leva-nos a ter de ser humildes, face ao muito que teremos ainda de aprender, caso estivermos motivados para tal.
*Ph. D em Ciências da Educação e Mestre em Relações Interculturais
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